Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Entrou na arena, tem que apanhar

Conta-se a história de um grupo de gladiadores que dominava as mais populares arenas do mundo antigo. Quando um de seus guerreiros completou trinta anos de inúmeras vitórias, outro gladiador decidiu investigar cada uma de suas conquistas, pois duvidava da procedência de tantos triunfos. O primeiro ficou furioso com a intromissão do adversário, e reuniu seus aliados para travar uma luta em defesa de suas propriedades.

O resultado da batalha ainda não está definido, porque, ao contrário do que foi dito, o combate começou há apenas quatro meses. A arena tem um nome peculiar: poder judiciário brasileiro, e nela disputam a Folha de S.Paulo e a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). O episódio começou quando o jornal publicou material investigativo que descrevia o império empresarial e de comunicação pertencente ao líder da Universal, bispo Edir Macedo, e outros membros.

As investigações são de autoria da repórter Elvira Lobato, que publica reportagens sobre a Iurd desde 1999. A jornalista teve acesso a documentos que vinculavam a igreja a duas empresas com sede nas ilhas Cayman e Jersey, legítimos paraísos fiscais. Assim que conseguiu comprovar a veracidade dos documentos, a Folha publicou em 15 de dezembro a reportagem ‘Universal chega aos 30 anos com império empresarial’.

O texto expõe as aquisições da Iurd, como 23 emissoras de TV, 40 de rádio e 19 empresas registradas em nome de fiéis, a maioria bispos. Quanto à verba por trás de tudo isso, Elvira apresenta a hipótese de que os dízimos dos membros sejam esquentados nos paraísos fiscais. Bastou uma matéria para dar origem às intrigas. A pancada doeu fundo nos envolvidos.

Reação massificada

Arena montada, a Universal logo tratou de apresentar suas armas. Foram levantados 75 processos por danos morais contra o jornal e a repórter Elvira Lobato. O engraçado é que o dano apresentado é o mesmo para a maioria dos fiéis. A revista Consultor Jurídico publicou em 19 de janeiro a queixa que, espantosamente, foi delatada por pessoas de norte ao sul do Brasil:

‘O autor [da ação] passou a ser apontado por seus semelhantes com adjetivos desqualificantes e de baixo calão, além de ser abordado com dizeres do tipo: `Viu só! Você que é trouxa de dar dinheiro para essa igreja!´, `Esse é o povo da sua igreja! Tudo safado!!´, `Como é que você continua nessa igreja? Você não lê jornal, não?´, `É. Crente é tudo tonto, mesmo´.’

Acompanhemos o caso da juíza Elisabete Franco Longobardi, da comarca de Carapebus, RJ. A magistrada julgou improcedente a ação de indenização de um pastor da Universal, por uma razão evidente: ‘Me parece estranho que num município onde o jornal Folha de S.Paulo não circula, os munícipes tenham adquirido o jornal e estejam abordando o requerente a fim de ofendê-lo’, afirmou ela em entrevista à Folha em 28 de fevereiro.

Outro fiel, Carlos Alberto Lima, também saiu perdendo. O juiz Alessandro Leite Pereira, de Bataguassu, MS, condenou Lima à pena de litigância de má-fé, com direito à multa de 800 reais. De acordo com o juiz, o reclamante não tem legitimidade na ação, já que não foi citado na reportagem. Sobre as gozações sofridas pelo fiel, o juiz foi claro e objetivo. ‘Se o autor está sendo vítima de chacotas de terceiras pessoas (…), é contra estas pessoas que o demandante deve direcionar a demanda’, declarou ele à Folha, em 26 de janeiro.

O mesmo jornal, cumprindo o papel de vítima, publicou em 9 de fevereiro uma entrevista com o juiz Edinaldo Muniz dos Santos, do Acre, que interpreta o número exagerado de ações como ‘uma atuação judicial massificada e difusa da Igreja Universal contra o jornal’. Ou seja, a igreja estimulou os membros a organizarem uma avalanche de indenizações num mesmo período.

Resgate na hora certa

Para salvar a pele do jornal, um herói entra na arena. Seu nome, deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), que pediu a suspensão de artigos da Lei de Imprensa, código este criado na época de domínio dos chacais militares. Em reposta, o ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu uma liminar que suspendeu 20 dos 77 artigos da Lei. A decisão do ministro é provisória, mas suspende alguns dos processos movidos por fiéis da Universal, pois agora só estão autorizadas as ações cíveis e criminais contra jornalistas com base nos códigos Civil e Penal. Quinze ações já são favoráveis à Folha.

A liminar chegou no tempo certo e foi comemorada pela imprensa. Pelo menos pela imprensa que zela pela liberdade no exercício da profissão, e luta para desatar as rédeas em favor da democracia. Os jornalistas finalmente receberam a carta de alforria, e com tal documento em mãos, estão livres para se defender de outros gladiadores.

O grito de independência do ministro Carlos Ayres Britto foi somado às vozes de vários órgãos de imprensa. Em nota divulgada em 17 de fevereiro, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), advertiu que o país ‘jamais assistira a uma investida partida da própria sociedade civil contra a liberdade de informação com a abrangência e o conteúdo desta (Igreja Universal)’. Com um pouco mais de ousadia, três dias depois, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) repudiou ‘com veemência, a atitude da direção da Igreja Universal do Reino de Deus, que desencadeia campanha de intimidação contra jornalistas no exercício da profissão’.

Os advogados também se posicionaram. A favor da Folha. No mesmo dia 20 de fevereiro, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) criticaram a onda de processos contra o jornal e Elvira Lobato. A AMB considera inadmissível que a Igreja Universal utilize o poder judiciário para atingir a liberdade de expressão e de imprensa, e disse que o judiciário irá inibir esse tipo de iniciativa. E já começou, com a liminar do STF.

Questão de interpretação

A Folha Universal divulgou frase do presidente Lula sobre o assunto, na última edição de fevereiro. ‘Quem escreve o que quer, ouve o que não quer’, disse. Ele defendeu o direito dos fiéis de recorrerem à justiça após serem agredidos pela reportagem da Folha de S.Paulo. Agredidos? A reportagem de Elvira Lobato não fere em nenhum momento as crenças da denominação. Portanto, se não é a agressão à fé que incomoda os fiéis, estes estão impedindo que seus líderes sejam investigados por explícitas irregularidades?

Agressão maior são os processos que correm na justiça. A repórter não duvida da procedência dos dízimos dos membros da Igreja, mas sim para que a verba é canalizada. É uma questão de interpretação, de ler o texto sem tomar as dores dos outros. Edir Macedo deveria estar consciente de que, quando se é imprensa, quando se exerce quarto poder, deve-se estar armado para brigas e aberto a críticas. Entrou na arena, tem que apanhar. Certa vez, logo no início da Igreja Universal, Macedo declarou: ‘Sou igual a massa de pão. Quanto mais apanha, mais cresce’ (O Bispo – A história revelada de Edir Macedo, biografia publicada em 2007).

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Estudante do 5º semestre de Jornalismo do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), Engenheiro Coelho, SP