A página ao lado do índice da edição desta semana Veja (nº 1.953, de 26/4/2006) traz uma foto em preto e branco de 1927 retratando cena impecavelmente elegante na calçada de Downing Street, em que aparece o primeiro-ministro Winston Churchill. Dos ingleses a revista se serve para apelar a uma discussão do orçamento da União em Brasília que levasse em conta os interesses da nação. Como este orçamento só agora, quatro meses adentro do novo exercício, foi aprovado, o clamor da revista procede. Assim, a primeira tela do alerta da Veja é pertinente. Avançando nas páginas, contudo, o leitor encontra incoerências graves. O propósito desta reflexão é examiná-las.
A profunda penetração e a capacidade de influenciar a opinião da população muito fariam pelo interesse nacional, na ótica do exemplo inglês invocado pelo semanário da Abril, se a revista jogasse mais limpo com o governo federal. Em duas matérias esse diagnostico aplica-se à justeza, acredito.
‘Eles invadem. O governo apóia’. O exato teria sido dizer ‘o governo tolera’. E tolera, como fez o de FHC, ou ninguém se lembra mais dos desdentados refestelados no sofá do ex-presidente na fazenda em Goiás? Conviveram os tucanos com o abacaxi por se tratarem os milhões de sem-terra de uma parcela de brasileiros para cujo sustento não se encontrou solução. Há 40 anos, quando o golpe militar abafou com mão-de-ferro as pressões da esquerda no Brasil, uma reforma agrária teria ajudado a segurar no campo as massas que migraram. Afinal, até o general McArthur tinha aplicado uma no Japão ocupado. Nesta última década, a consolidação do agronegócio, capital-intensivo e profundamente dependente de economias de escala, reconfigurou completamente a questão. Mas a sociedade resta com o dever de encontrar como reconhecer a cidadania das multidões que empunham a bandeira do MST.
Da maneira como a reportagem de Juliana Linhares e Marcelo Carneiro coloca, parece que a administração Lula desenvolve uma solução ideológica para a questão do MST. Algo socialista, de confisco de terras para distribuição. Pois o governo do PT está dando demonstrações inequívocas de respeitar o mercado, de ter virado a página dos primeiros discursos de campanha. Por exemplo, afastemo-nos de um problema intrincado, dilemático como o dos sem-terra e passemos a um caso concreto como o da Varig. Pois a receita de Lula é exatamente a da Veja (ver edição 1.952): que o mercado resolva.
Má vontade ou torcida
Numa segunda parte da edição 1.953, Veja desserve o país por não controlar sua ânsia de diminuir as realizações do governo do PT. É na matéria sobre as celebrações em torno da auto-suficiência brasileira conquistada na semana passada com a entrada em operação da plataforma P-50. Evidentemente que não foi o PT sozinho que conseguiu nos levar às proximidades dos dois milhões de barris/dia. Mas é praxe que o presidente da República inaugure obras, sempre fizeram assim também governadores e prefeitos.
A matéria ‘Não sobra petróleo. Falta crescimento’, escrita pela dupla Giuliano Guandalini e Cíntia Borsato, é um coquetel de pessimismo com holofotes mirados no desglamour. Seu ânimo é tirar os louros do PT, diminuir a festa dos dois milhões de barris. Segundo os jornalistas, não teria a marca tanto valor porque não haveria auto-suficiência sem o equivalente a 200 mil barris de combustível fornecidos pelo álcool, ou 300 mil de gás. Como se álcool e gás não estivessem sendo produzidos no mesmo país, como se a economia dessas commodities nada tivesse a ver com o Estado.
O fato é que a Petrobras se destaca internacionalmente no setor sofisticado que é a engenharia da exploração em águas marítimas profundas e com ela consegue blindar a oferta na economia brasileira. Na semana em que o barril bate os 75 dólares, dizer que as mãos de Lula sujas de óleo são demagogia… só mesmo com muita má vontade ou torcida.
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Diretor de ONG, Bahia