Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Essa viagem para o vazio


Para tudo na vida há um poema de Drummond. Para quase tudo na morte, também. Para um desastre aéreo, por exemplo, lá está ele, Carlos Drummond de Andrade, com as palavras necessárias:




‘A morte dispôs poltronas para o conforto/ da espera. Aqui se encontram/ os que vão morrer e não sabem./ (…)/ Sinto-me natural a milhares de metros de altura,/ nem ave nem mito,/ guardo consciência de meus poderes,/ e sem mistificação eu voo,/ sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,/ ligado à terra pela memória/ e pelo costume dos músculos,/ carne em breve explodindo./ (…)/ Ó brancura, serenidade sob a violência/ da morte sem aviso prévio,/ cautelosa, não obstante irreprimível/ aproximação de um perigo atmosférico/ golpe vibrado no ar, lâmina de vento/ no pescoço, raio/ choque estrondo fulguração/ rolamos pulverizados/ caio verticalmente e me transformo em notícia.’


Os versos de ‘Morte no avião’ compareceram, ainda que em silêncio, ao noticiário da semana. Sempre é assim quando somos sobressaltados por um acidente aéreo de proporções tão graves como o do voo 447 da Air France. A gente quase não fala desses versos, talvez para não provocar mais dor sobre a dor já instalada, mas eles estão ali, presentes, doendo. O Airbus A330-200, que sumiu do mapa às 23h14 do domingo, quando sobrevoava o Atlântico, não pousou em Paris, como programado, mas nas páginas dos jornais. Cada uma das 228 pessoas a bordo ‘caiu verticalmente e se transformou em notícia’. Exatamente como Drummond avisa.


Último ritual


A palavra ‘notícia’ fecha o poema como se o cortasse bruscamente. Ela é chave para compreendermos como o jornalismo, nesses casos, nos ajuda a aplacar o sofrimento. No verso final, a palavra ‘notícia’ subverte o que seria a ordem natural das coisas. A ‘notícia’ ocupa o lugar de ‘cadáver’ ou mesmo de ‘espírito’: surge como o destino certo dos que encontram a morte no avião. Dificilmente eles poderão ter um funeral como outros mortos normais, pois seus corpos se perderam. Nessas circunstâncias tão ‘antinaturais’, é pelas manchetes que eles são velados – e é assim, velando-os, que as notícias confortam os que ficam.


Os jornais os velam, verdadeiramente, mas os velam a seu modo: não pelo silêncio, mas pelo excesso de palavras, em letras garrafais. É o que se passa agora, com o voo 447. Os noticiários se desdobram para resgatar não os corpos, mas a biografia das vítimas. Suas histórias e suas fotografias ocupam o lugar dos restos mortais. São elas, as biografias sintéticas e as fotografias, que são pranteadas. A moça que tinha medo de avião – e que, por isso, adiou o embarque por vários dias – está lá. O casal em lua de mel, também. O tripulante brasileiro que falava muitas línguas sorri. Nós os vemos em seus álbuns de família. Os parentes comparecem às mesmas páginas, desolados em saguões. É uma cerimônia fúnebre e ruidosa ao mesmo tempo. É o modo que a notícia tem de fazer seu luto.


Para alguns, a cobertura peca pelo sensacionalismo, mas não é bem assim. Nesses casos, pelo menos, não só assim. A própria poesia de Drummond fala em ‘choque, estrondo, fulguração’, fala em ‘pulverização’ de corpos humanos. Ela chama para si as cores espetaculares da catástrofe. Mais que denunciar ‘sensacionalismo’, ela localiza na notícia a ‘morada final’ desses mortos. A notícia sobre eles cumpriria uma função não declarada de consolar os que sobrevivem, atônitos. Sem o jornalismo nós talvez não tivéssemos como recobrir com palavras o vazio deixado pelos desaparecidos, e sem essas palavras não teríamos como superar a perda. Nessas ocasiões, as notícias seriam, então, o ritual que nos resta.


Saturados de notícias


Assim é que, diante do que se passou com o voo AF 447, os jornais não descansam. Não conseguiriam descansar. As reportagens, as entrevistas com os especialistas – entrevistas exaustivas, mais que exclusivas –, as revelações das investigações sobre as causas do acidente, tudo se multiplica. Os jornais lidam com o trauma quase insuportável deixado por um avião que cai do ar e depois naufraga no oceano. Eles representam uma ansiedade que é de todos: a ansiedade de explicar o inexplicável, de processar a aceitação do inaceitável, simbolizar um sepultamento que na prática é inviável.


Na capa dos jornais de quarta-feira (3/6) apareceu a foto de um militar francês que, da janela de uma aeronave, olhava para o mar, com binóculos. Procurava sinais. Olhava para o que ainda não enxerga. Tentava ver o invisível. Estamos todos assim, à espera de um sinal, de uma forma de decifrar o desastre, precisamos de algo que nos convença de que existe, em algum lugar, de algum modo, uma explicação para o que aconteceu, uma falha mecânica, um erro humano. Precisamos de algo que nos autorize a acreditar que tudo não passou de um lamentável engano, uma distração que poderia ter sido evitada pela técnica e pela ciência.


Ainda na quarta-feira, no meio do dia, surgiram pistas: uma mancha de óleo, um objeto de sete metros de diâmetro, estilhaços flutuantes. A isso nos vamos apegar, a partir de agora. O noticiário vai-se abastecer desses resquícios e das ilações que eles permitirem. É assim que as notícias cuidarão de fechar a ferida que nos pôs cara a cara com o vazio que engoliu o Airbus 330-200. Cuidarão de soterrá-la. Quanto mais elas falarem do avião, menos pensaremos sobre o pesadelo que elas encobrem. Depois, a comoção vai passar. Aos poucos, saturados de notícias, nós vamos nos esquecer do acidente, do poema de Drummond e do vazio que nos espreita.

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Professor-doutor da Escola de Comunicações e Artes da USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da mesma universidade