Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Esses homens arrependidos e suas mulheres maltratadas

Doca Street matou Ângela Diniz nos anos 1970. Saiu livre no primeiro julgamento sob a alegação de que agira em ‘legítima defesa da honra’. Julgado outra vez, acabou condenado a 15 anos de prisão e hoje, aos 72 anos, está lançando um livro ‘porque precisa falar para não enlouquecer’ (O Estado de S.Paulo, 1/9/2006).

O ator Kadu Moliterno deu um soco na mulher, a jornalista Ingrid Saldanha, no carnaval deste ano. O caso foi parar na Justiça e ele foi condenado a prestar serviços comunitários durante um ano. Agora, o ator resolveu dar a sua versão do caso à revista Caras (30/8/2006):

‘Não posso dizer que ela está errada. Eu a agredi. E me arrependo muito. Ela foi para a Justiça, eu peguei uma pena e estou cumprindo. Jamais vou me considerar uma pessoa que está certa naquilo que fez. Ao contrário. Assumo aquele momento de destempero, de descontrole, e quero retomar a minha vida em família inclusive com ela.’

Arrependimento e descontrole são os argumentos que eles usam para justificar seus atos. Mas entre esses dois casos há uma grande diferença, além da gravidade do crime: nos tempos de Doca Street, homens agressores podiam se livrar alegando legítima defesa da honra; nos tempos de hoje, bater em mulher pode levar o homem à prisão.

Condenado a prestar serviços comunitários em março – porque o juiz considerou que a pena pecuniária teria pouco efeito sobre o acusado – Kadu Moliterno se livrou por pouco de ir para a cadeia. Três meses depois de ter sido julgado, em agosto deste ano (ver ‘Violência doméstica: Uma lei importante que a imprensa mal noticiou‘, OI, 15/8/2006), foi sancionada a lei da Violência Doméstica e Familiar, que aumenta de um para até três anos a pena máxima de detenção para o homem que agride a mulher. De acordo com a lei, o marido que bater na mulher poderá ser preso em flagrante e perder o direito de ver os filhos ou entrar em casa. O pagamento de multa ou cesta básica (em vigor quando o ator foi condenado) não livra mais o condenado da prisão.

Reportagem-show

A lei mudou, mudaram os argumentos usados pelos homens, mas não mudou o tratamento que a imprensa dá às mulheres agredidas. Elas só se tornam notícia se seu agressor for uma celebridade. As mulheres comuns, casadas com homens comuns, continuam a ser agredidas sem que seus casos recebam qualquer atenção da mídia – a não ser quando são personagens de novela.

Quando Doca matou Ângela Diniz e virou celebridade, a fama ainda era restrita a astros e estrelas de TV e as revistas de fofoca eram vistas com reservas – tanto pelos jornalistas como pelos leitores. Fofocas sobre artistas eram assuntos de menor importância, reservados às revistas que só faziam sucesso nos salões de cabeleireiro. Hoje, a vida de artistas e celebridades em geral (basta aparecer cinco minutos na TV para se tornar uma) alimenta uma série de publicações que copiam Caras, que por sua vez copia publicações estrangeiras – um novo tipo de ‘jornalismo’ em que falar da vida alheia deixou de ser fofoca para entrar na categoria da informação.

Como esse tipo de publicação não tem compromisso com o leitor – e muito menos com a informação – o que se vê é uma reportagem-show em que o cenário é montado e o entrevistado se torna o dono da verdade, já que não se abre espaço para outros envolvidos na história, no caso a mulher agredida.

O outro lado

Se o ator queria ‘desabafar’, ‘contar o seu lado da história’, ‘falar do seu arrependimento’, era só ligar um gravador na frente dele (se é que ainda se usa gravador ao fazer entrevistas) e reproduzir suas palavras. Nada disso: o ator e os filhos aparecem numa estação de esqui, onde ele responde perguntas singelas como: ‘Essa história que vocês dois estão vivendo parece bastante incomum, não é?’, ‘Como é o seu trabalho no Lar Maria de Lourdes?’, ‘Como foi seu casamento?’. Ou com afirmações do tipo: ‘Então você explodiu…’.

A reportagem – anunciada como um furo em que o ator ‘rompe o silêncio’ – faz uma revelação fundamental: a de que, para fazer matérias nesse tipo de publicação, não basta ter um repórter e fotógrafo: é preciso a cooperação de lojas de roupas e acessórios, cabeleireiros e maquiladores, produtores de eventos etc., etc.

E revela também seu poder contaminador no resto da imprensa. Na carona de Caras, Veja aproveita para entrar no assunto, abrindo um pequeno espaço para Ingrid Saldanha dar a sua versão do caso e dizer que não se arrepende de ter ido à Justiça:

‘Foi uma lição que ele merecia. Eu sofria agressões e ficava quieta. Agora ele sabe que não pode mexer comigo, eu não tenho mais medo.’

O erro da Veja? No melhor estilo das revistas de celebridades, esqueceu de abrir espaço para o outro lado.

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Jornalista