É a existência e a atuação de uma rede de cumplicidades institucionais e sociais – produzindo o caldo cultural que naturaliza e sustenta o sexismo – que permite a persistência de violências contra as mulheres: violências simbólicas, verbais, psicológicas, físicas. Aí se inclui o estupro que atinge a liberdade sexual da mulher, humilha-a, sendo usado também como arma em conflitos.
Recentemente acompanhamos as agressões contra imigrantes no Suriname, que incluíram estupros contra mulheres brasileiras. Na véspera de Natal, 200 brasileiros foram atacados por locais e 20 mulheres teriam sido estupradas. O governo brasileiro tomou iniciativas por meio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM) e da embaixada brasileira em Paramaribo. ‘As vítimas de violência sexual precisam de um acompanhamento psicológico porque o trauma é muito grande,’ declarou a subsecretária de Enfrentamento à Violência da SEPM, Aparecida Gonçalves. E são expostas a riscos de gravidez e contaminação por DSTs/HIV.
Fora da pauta
A questão do estupro foi pautada pela revista piauí, na edição de dezembro de 2009 (nº 39, págs. 24-25), abrindo espaço para a escritora inglesa Jenny Diski em ‘O sono de Polanski’, sob a chamada ‘Questões jurídico-sexuais’, texto publicado em 5/11/2009 pela London Review of Books (vol 31, nº 21, p. 52/53), o que é insuficiente para conceder salvo conduto a órgãos com responsabilidade social da mídia brasileira, traduzi-lo e republicá-lo.
A autora declara ter vivido, aos 14 anos, a experiência do estupro e coloca a grave questão do consentimento e também de o estupro ser mesmo possível. Escreve ela:
‘Um amigo mais velho e experiente me garantiu, anos mais tarde, que era impossível estuprar uma mulher: se a penetração ocorria, era porque ela queria. Não lhe contei sobre o estupro, mas fiquei imaginando se, nesse caso, eu devia parar de pensar naquilo como um estupro, uma vez que tinha havido penetração. Hoje já não penso mais assim, embora continue acreditando que não foi a pior experiência da minha vida.’
Radicalizando com as suposições masculinistas, ela assume a ideologia da culpabilização da vítima, com a inversão de responsabilidades: ‘Sem dúvida, Samantha Geimer [então, com 13 anos] (juntamente com sua mãe), assim como eu, colocou-se numa situação na qual o estupro poderia ocorrer.’ Essa ideologia constitui um poderoso mecanismo de deslocamento moral, atribuindo a vítimas a responsabilidade seja por estupro e violências sofridas pelas mulheres, seja pela miséria pelos pobres do mundo, doença e toda sorte de discriminações sofridas pelos mais vulnerabilizados. É também um mecanismo por meio do qual almas nobres têm convivido, sem desconfortos, nem inquietações, com um sistema injusto. ‘Talvez ela tenha correspondido, e talvez até consentido em fazer sexo oral com Polanski. Então ele a penetrou e perguntou quando fora sua última menstruação. Quando viu que ela não sabia (…) por via das dúvidas ele a sodomizou.’ E finaliza com a interrogação: ‘Não foi gentil de sua parte?’
piauí ofereceu espaço para o ‘gentil’ Polanski – distante, lá na Suíça – e reservou silêncio para Roger Abdelmassih – aqui, no Brasil –, preso em 17 de agosto com 56 acusações de estupro. A partir de que critérios? E os encaminhamentos desse caso? Se com a decisão da ministra Ellen Gracie, ele teve pedido de habeas corpus negado, em dezembro, já com o tribunal em recesso, o ministro Gilmar Mendes acatou o pedido de seus advogados e o médico foi solto. Por que nada disso que ocorreu em nosso país, deixou de ser considerado digno de pauta, ao contrário do caso Polanski?
Silêncios e omissões
O Brasil tem uma história de décadas de lutas para desnaturalizar e erradicar a violência contra as mulheres. Em um país com a Lei Maria da Penha, com Políticas de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, com Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAMs) e Juizados Especiais para enfrentamento da Violência contra a Mulher, a mídia têm o direito de, na contra-corrente dos esforços do governo e da sociedade civil, do movimento feminista, veicular sexismo e minimizar a violência e o estupro?
Marcelo Tas responderia: não! É o que se pode deduzir a partir de sua entrevista ao Correio Braziliense (20/12). Em momento de autocrítica, ele admitiu que o CQC escorrega em sexismo. ‘Acho que ainda é um programa muito sexista (…) às vezes passa do tolerável na questão do machismo ou da grossura.’ OK. Mas… eis seu diagnóstico: ‘[é] uma coisa inevitável, porque é muita testosterona’. Derrapagem! No ‘CQTeste’ ele ouviria um contundente: ‘Errrradoo!’ Enfim, não são exatamente os hormônios que nos fazem homens – e mulheres – sexistas.
Para além do sexismo, nossos Planos Nacionais de Direitos Humanos – especialmente o III, apresentado em 21 de dezembro – colocam um horizonte de comprometimento dos veículos de comunicação com a promoção dos Direitos Humanos, compromisso com os princípios de justiça e igualdade, aos quais se opõem práticas de sexismo, de racismo, de homofobia, entre outras práticas discriminatórias. Os Direitos das Meninas e das Adolescentes, os Direitos das Mulheres – e, aqui, o direito a uma vida livre de violência – são Direitos Humanos.
É imperativo dar um tratamento redistributivo de responsabilidades para as violências sexistas – também responsabilidades sociais e institucionais –, que se efetivam por práticas, silêncios e omissões. Há cumplicidades e, portanto, as responsabilidades devem ser compartilhadas por todos os setores da sociedade – com destaque especial à mídia –, que convivem e consentem com criminalidades sexistas.
Nada disso, entretanto, elimina ou atenua as responsabilidades dos agressores.
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Fabricação de ‘verdades’ e violência de gênero — A.L.T.******
Doutora em sociologia, autora de Em Nome da Mãe: o não reconhecimento paterno no Brasil (Editora Mulheres, 2009); Brasília, DF