Após quase dois meses de trocas de acusações, marchas pró e contra e campanhas inflamadas nas rádios e TVs do Equador, a bancada do presidente Rafael Correa fechou acordo com a oposição para desidratar os trechos mais polêmicos da nova Lei de Comunicação e Informação, que começará a ser discutida na terça-feira [22/12] na Assembleia Nacional.
Pelo pacto, assinado na quinta-feira [17/12] , os governistas, que têm maioria, abriram mão da representação direta do Executivo no futuro órgão regulador do setor de comunicações.
Pelo projeto original da bancada, o governo indicaria 3 dos 7 integrantes do novo Conselho de Comunicação e Informação. Agora, não haverá nem Executivo nem representantes de jornais e TVs.
Os governistas também desistiram de dar à instância poder para sancionar os meios de comunicação com multas ou até com ordem de fechamento, caso incorressem em delitos à luz da nova legislação.
O acordo mínimo foi comemorado por governistas -entre eles também havia críticas aos excessos do futuro órgão administrativo- e pela oposição e ajudou a acalmar, momentaneamente, os ânimos (leia entrevistas abaixo).
‘Foi um resultado saudável. Contribuiu para ele tanto a pressão interna como a externa’, diz César Ricaurte, da Fundamedios, organização pró-liberdade de imprensa em Quito.
Ricaurte, que é colunista do jornal Hoy e ombudsman da rede de TV Ecuavisa, contabiliza na pressão externa as críticas de Catalina Botero, relatora para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), e da ONG Human Rights Watch.
No front interno, Quito e Guayaquil, a capital econômica equatoriana, assistiram nas últimas semanas a marchas convocadas por TVs e jornais, ferrenhos críticos do governo do presidente Rafael Correa, contra o que chamaram de ‘lei da mordaça’, seguidora dos ditames de Hugo Chávez, na Venezuela, e de Cristina Kirchner, na Argentina.
Tudo isso ocorre apenas meses depois de Correa definir, no seu discurso de posse do segundo mandato, em agosto, a imprensa como ‘seu principal inimigo’. Ele ainda enfrenta momento delicado por conta dos apagões e do racionamento de energia -que atingiram inclusive a reunião da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) no país, em novembro.
A nova legislação será o marco legal para o setor de comunicações ajustado à nova Constituição, aprovada em 2008.
Atualização e futuro
Pela Carta, por exemplo, empresas do sistema financeiro ficaram proibidas de serem acionistas de meios de comunicação. O veto é uma resposta à crise econômica de 2001, que levaria o país à dolarização. As duas principais TVs do país, então pertencentes a grupos financeiros, demoraram para noticiar a debacle bancária.
Por causa da regra, uma das principais TVs, a Teleamazonas, do Grupo Banco del Pichincha, tem menos de um ano para trocar de dono.
Outra já está desde 2008 sob administração do governo, que interveio nas empresas alegando que pretendia compensar o Estado pelo rombo deixado pelo Filanbanco.
Apesar das divergências, analistas festejam que a nova norma substitua a lei de rádio e TV de 1975, feita sob a ditadura de Guillermo Rodriguez Lara (1972-1976), que permite ao governo fechar rádios e TVs.
O pacto fechado com a oposição também estabelece que a concessão de rádio e TV, a partir da nova lei, terá de usar critérios equitativos para o setor público, privado e comunitário.
A discussão nem começou, mas já há um imbróglio em curso desde o mês passado, quando o governo cassou concessões adquiridas supostamente de modo ilegal, segundo auditoria feita pelo Executivo.
O debate promete ser acalorado em torno da proposição do governo de exigir diploma de jornalista. Enquanto escolas de comunicação são a favor, críticos argumentam que será cerceada a liberdade de expressão.
Também deve provocar controvérsia a aplicação de conceitos subjetivos como a definição de ‘informação veraz’, ‘contextualizada’ e ‘contrastada’, presentes na Carta, para guiar futuras sanções contra a mídia.
A oposição promete exigir regras claras para a administração dos meios de comunicação públicos –atualmente, uma TV, criada por Correa, uma rádio e um jornal. Querem também regras para a distribuição de publicidade estatal.O governo diz concordar em estabelecer ‘igualdade de oportunidades’ nesta questão.
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‘Trato barra tentativa de boicote à lei’
O presidente da Assembleia Nacional do Equador, o governista Fernando Cordero, admite que a primeira versão da lei de comunicação apresentada por aliados era ‘controversa’, mas atribui reação da opinião pública à campanha dos que queriam boicotar a legislação.
Por que houve recuo em relação ao texto original?
Fernando Cordero – Foi uma atitude do presidente, espontânea. Não havia nenhum interesse do governo em participar do Conselho de Comunicação. Essa lei não foi iniciativa do Executivo, surgiu da iniciativa de três assembleístas e o projeto teve um primeiro relatório controverso. Havia algumas coincidências com o pensamento do presidente. Em outros pontos, não.
Chegamos a um acordo histórico, que cria as condições políticas e sociais que permitirão uma grande lei. A comunicação é um direito incorporado na Constituição, necessário num país intercultural e diverso como o nosso.
Houve erro do governo no debate do que foi chamado de ‘lei da mordaça’?
F.C. – Havia uma campanha para desprestigiar a Assembleia e a ideia de uma lei. Havia muitos setores interessados em que não houvesse lei.
O presidente vem denunciando há três anos os abusos de alguns órgãos de imprensa. Ele faz isso aos sábados, em seu programa de rádio. Ele criou um quadro que se chama ‘A informação já é de todos’, no qual se denunciaram práticas equivocadas dos meios, certos tipos de distorção e manipulação. Daí tiraram a ‘lei da mordaça’. Não há nada disso.
A ideia é redistribuir concessões de rádio e TV?
F.C. – A nova lei consagrará o acesso, em igualdade de oportunidades, ao setor público, ao setor privado e ao comunitário. Adicionalmente, essa lei não vai deixar de considerar que no Equador há 200 frequências, mais de rádio do que de TV, que foram ilegalmente adquiridas. E elas serão revertidas ao Estado e redistribuídas com base na nova lei.
Houve marchas e atos contra o projeto…
F.C. – Algumas dessas expressões, não todas, eram criadas pelos que não queriam a lei, baseados em pressupostos falsos. Não havia razão para as marchas, mas elas existiram. E foram crescendo dia a dia. Gastaram muito dinheiro para fazer essa campanha. Mas esse acordo derruba todas essas falsidades e nos permite construir coletivamente.
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‘Anulamos a intenção autoritária’
O jornalista e cientista político César Montúfar, deputado pela oposicionista Concertação Nacional, diz que o recuo do governo do Equador em pontos do projeto de lei de imprensa foi resultado da pressão da opinião pública. Afirma que o acordo, que ele ajudou a costurar, é só o começo da negociação dura que está por vir.
O acordo foi um triunfo da oposição?
César Montúfar – É um triunfo para o país que a Assembleia tenha conseguido chegar a esse acordo, apesar da campanha polarizadora, agressiva, violadora dos direitos humanos do governo. Abre-se a possibilidade de discutirmos os demais temas. É uma base importante porque neutraliza o risco maior, que é o controle, por parte do governo, dos meios de comunicação. Era essa a clara intenção autoritária. Esse risco está neutralizado.
Quais são os pontos centrais a discutir agora?
C.M. – A distribuição do espectro radioeletrético, a democratização da comunicação. Temos de acompanhar a composição do Conselho de Comunicação, para que ele seja independente de governos. Outro ponto é o escopo de regulação que esse conselho vai ter. Deveríamos lutar para que a função de regulação se limite à determinação de horários para cada tipo de programação.
O governo Correa, como outros na região, diz que há excessos em jornais e TVs, que agem como braços da oposição. Qual sua opinião?
C.M. – Numa democracia, até certo ponto é normal a tensão entre governos e meios de comunicação. Mas é importante que essa tensão não derive em intenção do governo de solapar a liberdade de expressão.
Creio que há um grave risco na América Latina de serem aprovadas de leis de comunicação que acabem sendo regressivas em relação aos avanços democráticos da região. Aí está o desafio. O que vimos no Equador, se não é perfeito, é um precedente importante. Um projeto que se dirigia a controlar os meios foi desativado.
Se seguem existindo riscos? Sim. Não podemos cruzar os braços. A opinião pública foi importante para a existência do acordo e tem de seguir mobilizada para que no final alcancemos um resultado que seja aceitável. Vai ser uma negociação muito dura, muito forte. Neste momento, o possível é inimigo do perfeito. Temos de ser pragmáticos.
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Repórter da Folha de S.Paulo