Há três anos chefe da Seção de Informações Públicas do Centro de Comunicação Social do Exército (CCOMSEx), o coronel Fernando Cunha Mattos conta histórias do genocídio de Ruanda e da campanha no Haiti – e o faz com admirável articulação. Até Audálio Dantas, representante da Associação Brasileira de Imprensa na coletiva, elogia as falas didáticas do militar. Os estudantes de Jornalismo do Projeto Repórter do Futuro conheceram o Exército como fonte organizada de informação e terminaram cientes do capital que hoje são as mídias para as instituições militares.
O coronel é da Artilharia, mas não fala de canhões: relata o início de um processo de abertura midiática das Forças Armadas a partir da percepção de que elas são instituições de alta credibilidade no seio da população, mas com baixa visibilidade. Hoje, ‘a instituição deixou de ser aquele grande mudo’, afirma. Esta abertura, entretanto, não está no plano da explicitação das verdades inteiras – na entrevista, ele garante um máximo de sinceridade, mas assuntos ligados à censura, por exemplo, passam escorregadios.
A criação de assessorias de imprensa na maior parte dos Comandos Militares, a permissão para acompanhamento de missões e até a edição de materiais informativos sobre aqueles que se arrogam o papel de ‘braço forte e mão amiga’ é a principal forma de angariar essa desejada visibilidade. A política de comunicação, segundo o coronel, decorre da falta de recursos para pagar propaganda.
‘Lei é limitante’
Tudo começou com o reconhecimento da alteração do estado de coisas no que tange à relação entre a opinião pública e a política: ‘Hoje, a capacidade de projeção de poder se tornou tão ou mais importante que o emprego da força. Nós entendemos a transformação da ação da comunicação social em fato político’, afirma o coronel, creditando força ao discurso jornalístico na alteração de cenários sociais – inclusive das questões de segurança pública.
As posturas festivas, contudo, não são as mais indicadas. O profundo desconhecimento das atribuições e atividades reais do Exército no país e fora dele entra no rol de críticas que o coronel reporta aos jornalistas. Segundo Cunha Mattos, jornalistas não escolhem um emprego (que acaba junto com o expediente), mas uma profissão; e desses profissionais ele relata ouvir frases como: ‘Se eles estão resolvendo o problema no Haiti, porque não resolvem o do Morro do Alemão?’ A explicação acompanha a bronca: ‘Um poder instituído tem que determinar a atuação da Força Armada na garantia da lei e da ordem’; daí, que as leis que vigem no Haiti e condicionam as formas de pacificação brasileira, onde há operações, são determinadas pela ONU.
No Brasil, é do artigo 142 da Constituição de 1988 que se retiram as atribuições do Exército – entre as quais não consta o poder de polícia. O coronel garante que há treinamento suficiente para que se atendam estes anseios e a criação, em 2004, da 11ª Brigada de Infantaria Leve e Garantia da Lei e da Ordem (GLO), na cidade de Campinas, corrobora a intenção de atuação (ver aqui). A questão maior, segundo ele, é que ‘a lei, hoje, é limitante’ e não se pode operar fora ou acima da lei sem criar grandes problemas – ‘limitações’ que, vale lembrar, as próprias forças armadas desfizeram, aos trancos e barrancos nos tempos do regime militar. Ele também questiona a aplicação de um estado de emergência ou de sítio no Rio de Janeiro – uma ressalva importante quando se fala da suspensão do estado de direito – e afirma, diferentemente de muitos, que a cidade não está imersa em uma guerra real.
‘Fazendo-se conhecer’
O coronel conhece numerosas redações e guarda o telefone de editores de importantes jornais do país, mas prefere responder, até às perguntas mais ácidas, com histórias de jornalistas que, a convite do CCOMSEx, acompanharam as missões com rodízio de tropas no Haiti e reconheceram a competência da tropa e do batalhão mais bem equipado da instituição. O telefone de contato para imprensa no Haiti era o dele e até nos corredores do Comando Militar do Sudeste um oficial afirma que Cunha Mattos é ‘quem fala de Haiti’. Vem a pergunta: os convites continuariam ocorrendo, a lógica da transparência se sustentaria, caso houvesse possibilidade legal de interferência do Exército, tal qual há no Haiti, nas situações brasileiras de violência? ‘É lógico que sim!’, responde Cunha Mattos.
Não é apenas nas falas deste coronel que as estruturas de comunicação do Exército saltam aos olhos – e há que se prestar atenção às formas assumidas por elas. Fica a nota de que as forças armadas se constituem em fontes de informação organizadas e, como no caso de qualquer fonte que comunica ativamente, o contato deve ser feito com o olho na História. Sob a insígnia ‘Fazendo-se conhecer’, o Comando Militar do Sudeste (CMSE) realizou, de 5 a 14 de novembro, o seu I Estágio de Comunicação Social, reunindo militares e civis – em especial estudantes de Jornalismo. De palestras a media trainings, o evento lançou forças sobre a imagem do CCOMSEx, tentando credibilizá-lo inclusive entre os oficiais; no corredor do CMSE, um deles parabeniza o coronel Sappi, da seção de Relações Públicas, pela palestra, dizendo que o CCOMSEx ‘vale a pena’.
Trabalhos na região amazônica
Dentro do auditório, o general Esper, dono de alguma experiência no trato com a imprensa, faz uma pequena exposição, ressaltando que militar ‘não tem que ficar bravinho com jornalista’. O tom deve ser o do respeito mútuo, mesmo se até o assunto ou a abordagem for antipática ao oficial, segundo ele. Num cenário formalmente diverso daquele que se poderia encontrar há trinta ou quarenta anos, fica exposto o desejo de cortar as animosidades pela raiz. Hoje, ao que parece, a instituição não quer criar problemas, mas desenhar em espaço público, e sob a aba do direito constituído, a sua capacidade de resolvê-los. Seja expondo os trabalhos em que cobre lacunas estatais, seja criando expectativas salvacionistas quando o tema é segurança pública, o Exército está preocupado em manter a bata limpa – não se sabe se do que ficou marcado com o sangue do passado ou se para garantir inserção perfeita no discurso de nosso tempo. E, se a ordem hegemônica é comunicar e a informação virou capital social, nada mais lógico que fazê-lo sob o ideal (ou simulacro?) da transparência.
Observar cuidadosamente estas reconfigurações é um imperativo, ainda que os falantes ganhem, com elas, auras mais credíveis. Ainda este ano, jornais de grande circulação, como a Folha de S.Paulo, exibiram fotografias do ministro Nelson Jobim com as preguiças do zoológico de Manaus – gerido junto ao Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), do Exército. Trata-se do programa de apresentação dos trabalhos do Exército na região amazônica a membros do executivo e do judiciário, que hoje já se estende a comunicadores e estudantes de Jornalismo. No dia 15 de outubro, contudo, notícia das menos desejadas coloca o CIGS e o belo lago do Puraquequara em pauta: ‘Militar morre durante treinamento do Exército em Manaus‘.
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Estudante de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo