O jornal O Globo (14/4/05) noticiou a homenagem do programa Observatório da Imprensa ao jornalista Ruy Mesquita que ‘…voltou a falar da murdochização da imprensa de um modo geral. Por murdochização, ele se referiu a ação de empresários que conduzem seus jornais como um negócio qualquer, cujo objetivo é só o lucro e não uma linha editorial opinativa’.
Obviamente, o jornal prega esta norma mas não a segue, pois só se pode opinar quando se tem acesso aos dados sobre o objeto em questão. Quando dois jornais, dirigidos as duas principais faixas de leitores de uma cidade (Extra e O Globo), pertencem a um mesmo grupo empresarial que omite sistematicamente informações contrárias a seus interesses comerciais sobre um bem público, parece uma denuncia bem grave.
Primeiramente porque sabemos o quanto é difícil diagnosticar tal prática. Deste modo, somente as pessoas diretamente envolvidas no caso sabem dos acontecimentos, ficando a opinião pública à mercê somente das noticias publicadas que interessam comercialmente à empresa de jornalismo. Pessoas eleitas para cargos públicos, dependentes do apoio da imprensa que garanta suas boas imagens diante da população – ‘ele não pode só ser, precisa parecer ser’ –, preferem normalmente não desagradar a imprensa e politicamente se omitem diante de fatos desta natureza.
Assim, os donos de jornais, normalmente fortalecidos pelo corporativismo, mantêm uma blindagem segura contra qualquer denúncia. O Ministério Publico porém, mesmo pressionado politicamente, não pára de trabalhar. Estamos falando do caso do Estádio de Remo da Lagoa. Muitas são as razões que nos fazem acreditar ser este monumento símbolo da formação da identidade carioca, e que deve ser conservado em sua forma e função. Um resumo de tal estudo poderá se lido no final deste artigo para melhor embasamento.
Há dez anos que o Estádio de Remo da Lagoa recebia diariamente cerca de 1.500 crianças de escolas públicas dos bairros no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas, para aulas de educação física. Repentinamente cancelaram essas atividades e o estádio foi entregue, sem concorrência, para a empresa Glenn Entertainments Ltda realizar benfeitorias que fortalecessem o remo e atividades comerciais compatíveis com o esporte.
O relacionamento entre a empresa e a atividade esportiva foi transferida da Federação de Remo do Estado do Rio de Janeiro, que defendia e defende o local como área pública para os esportes, para a Confederação Brasileira de Remo, que não tem apoiado os interesses do esporte no Rio de Janeiro.
Assim, apesar do contrato afirmar ser de interesse do esporte do remo, a permissionária –com o apoio da Confederação – projeta para o local atividades comerciais que nada têm a ver com a vocação tradicional do lugar (como, por exemplo, cinemas fechados em área de lazer contemplativo), e que provocarão problemas graves de trânsito, prejudicando o esporte e a área em geral como bem público.
Renovação sem concorrência
É a historia do Tivoli Park na Lagoa: os argumentos são semelhantes, não se conseguia retirar o parque moribundo… Somente uma atitude enérgica do Estado possibilitou sua remoção e a remodelação do lugar que hoje é para a população o maravilhoso Parque dos Patins. Por que não se faz o mesmo com o Estádio de Remo? Porque a permissionária Glenn tem o apoio das Organizações Globo. Seu representante, Marco Aurélio Chiappeta, que há dez anos mantém o estádio como um canteiro de obras, sem conseguir as licenças ambientais exigidas entre outras, é sogro de Paula Marinho, fiadora deste fracassado projeto.
Quem se habilita a se colocar publicamente contra este projeto?
O Ministério Público do Meio Ambiente enviou uma correspondência aos governos do estado e do município, e ao permissionário, recomendando que os contratos fossem cancelados e que o Estádio de Remo não pode ser transformado, registrando que o estudo de impacto ambiental apresentado nada mais é que um relatório tendencioso, e a solução adotada para aliviar o impacto no trânsito não atende às necessidades viárias. Entretanto nada foi mudado, tampouco publicado ou informado na mídia.
O Ministério Público moveu uma ação contra o estado, o município e a empresa Glenn Entertainments na 8º Vara de Fazenda do Estado, denunciando as numerosas irregularidades do contrato. A Procuradoria do Estado, tecnicamente, solicitou autorização do Ministério Público para entrar no pólo ativo do processo (deixar de ser réu, para ser litisconsorte do Ministério Público. Surpreendentemente, o procurador-geral do estado, Francisco Conti, pediu vistas do processo e colocou o estado novamente na condição de réu, contrariamente aos argumentos que a Procuradoria havia adotado. Esta atitude também é denunciada no processo.
Na semana retrasada, o Ministério Público da Cidadania, que também contesta a forma da cessão do bem público sem concorrência e a falta de pagamento relativo ao aluguel contratado (motivado pelo aditivo contratual que posterga o início do pagamento para a data de inauguração, sem no entanto determinar prazos), conseguiu, por meio de ação movida contra o estado, município e o permissionario, a antecipação de tutela para o governo do estado – que foi determinado pelo desembargador Bernardo Garcez em agravo – e fez cumprir a reintegração de posse do Estádio de Remo ao Estado do Rio de Janeiro, com o despejo da empresa Glenn, em cerca de 20 dias.
Na semana passada, o prefeito do Rio, César Maia, tombou o Estádio de Remo com o intuito de manter as características modernistas do projeto arquitetônico – ato publicado do Diário Oficial do Município em 13/4/2005.
Observe-se que não saiu notícia alguma no Globo ou no Extra sobre o assunto, que no entanto foi publicada jornal esportivo Lance!, com destaque.
Ato contínuo, foi determinada pelo ministro relator João Otávio de Noronha, de Brasília, a reintegração de posse à empresa Glenn – tendo o magistrado deferido suspender até o trânsito derradeiro do recurso especial.
Nenhuma dessas notícia foi publicada no jornal O Globo e provavelmente no Jornal do Brasil. Este comportamento tendencioso provoca que a opinião pública conheça somente as razões do permissionária do Estádio de Remo. Ocorre que com o tombamento do estádio pela prefeitura, a empresa Glenn continuará de posse do bem público, sem que consiga aprovar seus projetos que não atendem ao esporte a à população.
Quem fará a adaptação do estádio para os Jogos Pan-Americanos de 2007? Será que com um estádio de tal magnitude seremos obrigados a erigir arquibancadas e hangares provisórios para guarda de barcos em outros locais da Lagoa Rodrigo de Freitas – o que implicará o dispêndio de preciosas verbas que depois nada legarão ao esporte? O Globo e o Jornal do Brasil têm apresentado esta opção da empresa permissionária como solução. E ficamos a nos perguntar: para quem interessa esta solução?
A opinião pública ignora esses fatos. A classe política evita se envolver. A imprensa não noticia por interesse próprio. A quem poderemos recorrer para impedir que se faça a violação de uma atividade histórica e centenária em nossa cidade, prejudicando a sociedade e o bem tombado, e beneficiando uma empresa que apesar de ter esta obrigação por contrato insiste em levar vantagem em tudo?
O dono do Jornal do Brasil, Nelson Tanure, comprou a Academia Estação do Corpo do empresário Ricardo Amaral, que tem a concessão de uso da área tomada do Estádio de Remo há mais de 50 anos, sempre renovada sem concorrência, desde que lá foi criado o Cine Drive In e o complexo de lazer com boates e restaurantes. Nunca o remo foi sequer considerado nestas negociações.
Onde esta a imprensa responsável e imparcial ?
O remo e a identidade carioca
A instalação do esporte do remo marca profundamente a passagem do espaço privado da casa para o espaço público da rua, do consumo do lazer, da busca da diversão, do culto do prazer e da alegria que surgem como características notáveis na sociedade carioca, marcando positivamente sua identidade. (Victor Andrade de Melo, professor da Escola de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Para conter as epidemias que assolavam a cidade no século 19, mudanças fundamentais nos hábitos e costumes foram introduzidas no Rio de Janeiro. O incentivo aos terapêuticos banhos de mar, e o surgimento de um mercado ao redor desta prática, realizado pelas empresas de bonde que ofereciam passeios para as praias de Botafogo e do Russel (hoje Flamengo) como estratégia de marketing, alterou a urbanização da cidade em direção às praias da Zona Sul e criou um terreno propício para o desenvolvimento do esporte do remo, um dos mais importantes elementos estruturadores da identidade carioca, ou seja, o gosto pelo esporte, prazer, descontração e lazer ao ar livre.
Este comportamento, estimulante para a troca de idéias, induziu a modernidade e definiu uma nova concepção estética corporal, possibilitando a transformação da cidade do Rio de Janeiro em Cidade Maravilhosa.
Pela cidade, jovens, outrora raquíticos e balofos, ostentavam largos peitorais, a cintura fina e a perna nervosa e a musculatura herculeana dos braços. Os dias de regata tornavam-se acontecimentos urbanos. (João do Rio, cronista carioca)
A exposição da plástica exibida pelos jovens atletas era um escândalo e se torna um verdadeiro frenesi.
Documentado está o protesto do indivíduo que entrou no mar trajando casaca para reclamar da rigidez dos antigos costumes que se escandalizavam com os trajes dos banhistas.
Uma das primeiras e mais divulgadas regatas no Rio de Janeiro foi realizada em 1846, entre as lagoas Lambe-Água e Cabocla, já contava com manchete no Jornal do Commercio e presença de grande público na assistência. O primeiro clube de remo a surgir, o Grupo dos Mareantes, de Niterói, realiza sua primeira e única regata em 1851. Em 9 de agosto de 1874 é fundado o Clube de Regatas Guanabarense, que marca definitivamente o estabelecimento do remo na cidade. A Marinha também apoiava o remo e, em 1862, realiza duas regatas. Até o imperador D. Pedro II passa a freqüentar tais competições com sua corte em meio a grande público.
A partir de 1880 surgem muitos clubes de remo. Aumentam o número de competições e o esporte definitivamente a se implanta pela cidade.
Mas o momento econômico, político financeiro da cidade do Rio de Janeiro se articula como foco de contestação e pensamento independente, e o efetivo do remo apóia a luta pelo fim da escravidão. Em 1888, realiza-se a Regata da Abolição com afluência de grande público. Depois, o esporte passa a se identificar com a nova forma republicana do governo brasileiro e organiza as bases em que se estruturam todos os outros esportes.
Depois da proclamação da República, as competições e o exercício do remo – que se faziam unicamente com o esforço dos amantes do esporte – passaram a contar com o apoio oficial. Com Pereira Passos, prefeito do Rio de Janeiro, e um dos responsáveis pelo grande processo de reformas, saneamento e urbanização por que passou a cidade nos primeiros anos do século 20, o remo recebeu muitos incentivos e se transformou em esporte de comoção nacional.
A criação do Clube de Regatas do Flamengo e do Vasco da Gama merecem depoimento de historiadores especializados para contar sobre os fundadores, as motivações e curiosidades de suas agremiações.
Ao longo do século 20, o esporte foi cultuado por milhares de atletas e torcedores. Eram mais de uma centena os clubes praticantes. Em meados de 1950, começou a construção do Estádio de Remo da Lagoa, único estádio do mundo construído em arquitetura moderna e anterior a construção de Brasília. Existem fotos da maquete e de diversas fases da construção.
Aos poucos, porém, este quadro muda. Apesar do gosto popular pela atividade, a cidade continua a crescer e em um momento, após inúmeras perdas anteriores em nome do desenvolvimento, o pavilhão de regatas na praia de Botafogo é desmontado e vendido ao ferro velho, vários clubes perdem seu acesso ao mar e ficam sem possibilidades de praticar o esporte.
Em entrevistas com dirigentes destes clubes e a estudiosos do assunto, foi possível conhecer como eram as regatas até 1970, o que representavam para a cidade do Rio de Janeiro, o processo de desarticulação dos clubes e a promoção da destruição do esporte. Absurdos foram feitos em nome da modernidade, como a eliminação dos espaços e dos acessos destinados ao remo até a descaracterização do Estádio da Lagoa. O espaço recebia cerca 30 mil pessoas nas regatas e era palco de aulas de educação física para cerca de 1500 crianças por dia quando foi desativado para a criação do malfadado projeto Lagoon. Hoje, mais parece uma carcaça, um canteiro de obras.
É a identidade carioca perdendo um de seus mais importantes símbolos.
E como está o carioca? Onde está o foco de contestação e pensamento independente? O gosto pela liberdade, pela vida ao ar livre e a felicidade de viver numa cidade maravilhosa? A atual fragilidade de um dos símbolos de sua identidade não seria um sinal de esfacelamento da tão cultuada alegria na personalidade do carioca?
Referências
Mendonça, Alberto B. – Historia do sport náutico no Brazil. Rio de Janeiro. Federação Brazileira das Sociedades de Remo, 1909
Licht, Henrique – O remo através dos tempos. Porto Alegre.Corag, 1986.
Andrade de Melo, Victor – Cidadesportiva. Rio de Janeiro. Dumará, 2001
Vice-presidente de Remo do Clube de Regatas do Flamengo