No país do ‘Não somos racistas’, o funk é incolor. E o povo não é dividido em classes sociais. Essa é a conclusão que se pode chegar lendo as reportagens sobre a audiência pública sobre o funk, realizada na terça-feira (25/8) na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), veiculadas no Globo e no G1 (ver aqui e aqui), ambos veículos pertencentes às Organizações Globo, onde um dos diretores de jornalismo é Ali Kamel (referências kamelianas em www.viomundo.com.br e em www.rodrigovianna.com.br).
Não se trata aqui de uma manifestação de desejo pessoal. Não é que eu quisesse que as reportagens se engajassem na óbvia interpretação da realidade carioca – partindo do pressuposto escancarado que o funk é feito, majoritariamente, por gente preta e favelada, a cor da classe trabalhadora de baixa renda do Rio de Janeiro. Não. O fato é que as Organizações Globo simplesmente omitiram a presença da antropóloga Adriana Facina, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e colunista do Fazendo Media.
Um dia depois do evento, que sem dúvida foi histórico, tive a oportunidade de conversar com Adriana. Pergunto: ‘Professora, o que de tão grave você disse para ser limada das matérias de hoje no Globo e no G1?’. Modesta, responde que não sabe se foi pelo que disse ou se a omissão ocorreu porque ela era menos famosa. Famosa? Achei que o ‘conceito’ estivesse reservado às publicações do tipo Quem e Caras, e a programas tipo Faustão, com sua ‘Dança dos Famosos’.
Permitam que o aluno discorde da professora, com todo o respeito. Qualquer jornalismo que se pretenda sério deve ter outros critérios de noticiabilidade e, no caso de uma brilhante pesquisadora como a Adriana, o correto seria extrair de seu pensamento a raiz da opressão contra o funk – algo, assim, totalmente esquecido pelo jornalismo kameliano, como se a própria audiência pública, tema base único das reportagens, tivesse sido chamada por um outro motivo qualquer, que não fosse esse.
Pois Adriana disse, logo no início de sua fala:
‘Quero começar relembrando que o que o funk sofre hoje na verdade é um capítulo de uma história mais antiga de criminalização da cultura negra no Brasil. A perseguição aos batuques que vinham das senzalas, à capoeira, ao maxixe, ao samba, entre outros, fez parte da formação da nossa sociedade, profundamente opressiva com os debaixo’.
Estava ali, logo no início. Não precisava garimpar muito, não precisava ser doutor para entender as palavras radicalmente simples da professora da UFF.
Futuro do movimento funkeiro
Para minha surpresa, recebi o telefonema de MC Leonardo, que muito justamente cobrou minha ausência na Alerj. Expliquei que estou com três artigos para entregar e, como salário de jornalista de esquerda não é lá essas coisas, não posso abrir mão dos raros frilas que aparecem. De qualquer maneira, vale situar para quem está chegando agora: Leonardo, autor com seu irmão Júnior de ‘Rap das Armas’, ‘Endereço dos Bailes’ e outros funks consagrados, é o presidente da APAFunk, a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk, criada há apenas um ano.
Meu amigo Carlos Latuff, um dos maiores cartunistas que conheço, disse que Leonardo foi ovacionado na Alerj. Eram quase mil pessoas, que lotaram plenário e galerias, 70% deles favelados que nunca tinham entrado na Casa Legislativa. Leonardo me diz que o funk conseguiu unir os favelados ao palácio, conseguiu unir os dois maiores empresários do setor (DJ Marlboro e Romulo Costa), conseguiu unir a direita e a esquerda (Paulo Melo, do PMDB, e Marcelo Freixo, do PSOL, que assinam o pedido de revogação da lei que criminaliza do funk) e, por fim, conseguiu unir os movimentos sociais em torno de uma mesma bandeira.
Tenho certeza que Leonardo é uma das maiores lideranças já surgidas no Rio de Janeiro em todos os tempos. Tenho certeza, também, que se trata de um sujeito à altura do desafio que tem pela frente. No entanto, é preciso que ele e as demais lideranças da APAFunk, como Mano Teko, DJ Marcelo Negão e os MCs Júnior e Tiana, não se iludam, pois muitas portas estão sendo abertas em função do período pré-eleitoral – o que significa dizer que políticos canalhas vão tentar se aproximar para usar a força do funk. É preciso que os funkeiros estejam sempre alerta. Porque a partir de agora o sistema vai jogar pesado. Vão tentar cooptá-los ou eliminá-los de cena. E a única medida de sucesso da APAFunk será o cumprimento de seus objetivos, apesar dessas pressões. Estou falando basicamente de duas coisas: manter o caráter de classe do movimento e continuar produzindo e veiculando as músicas que a ‘elite’ e seu mercado não aceitam.
E que o povo preto, pobre e favelado tome a Alerj de assalto em 1º de setembro, terça-feira, às 18h, para garantir que seus funcionários, os deputados, votem pela derrubada da lei que criminaliza o funk e, em seu lugar, aprovem uma outra legislação que entenda o ritmo como uma manifestação cultural.
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Jornalista