Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fato jurídico, jornalístico e político versus impunidade

Estão em pauta os excessos da Polícia Federal: constrangimentos, vazamentos, arbitrariedades, estado policial. Eis as palavras-chaves que permeiam as críticas quanto ao trabalho da instituição. A avalanche crítica desabou sobre sua atuação, quando figuras, até então imunes e impunes E que não costumavam freqüentar as páginas policiais, começaram a ser algemadas e presas.

No passado, quando procuradores da República passaram a municiar a imprensa com notícias sobre o crime de colarinho branco, tentaram criar a tal Lei da Mordaça. Tais manifestações trazem, em parte, a marca da hipocrisia que impera entre os ‘arautos da dignidade’. Eles, que nada fizeram (com seus métodos insuspeitos) para consertar ou pôr o país nos trilhos, fingem desconhecer os pilares de sustentação da esquálida democracia brasileira: a corrupção. Pelo contrário, sempre defenderam, alimentaram o processo e dele se beneficiaram.

Ao reabrir esse debate, queremos fazê-lo sob a perspectiva de uma trilogia fundamental para a análise do atual momento nacional que traz como pano de fundo o aumento da sensação de impunidade, posto que os atuais escândalos apenas se somam a inúmeros outros.

Fatos se operam através de atos

A trilogia de que falamos não é um jogo de palavras e se apresenta como fato jurídico, fato jornalístico e fato político. Três fenômenos distintos que por vezes convergem, se assemelham, se confundem, mas que não produzem, necessariamente, os mesmos resultados. Tentemos, pois, operar a distinção entre os três conceitos e entender como a confusão entre eles concorre para aumentar a sensação de impunidade e vicia as críticas.

Em sentido amplo, fato jurídico é todo acontecimento em decorrência do qual nascem, subsistem e ou se extinguem relações jurídicas. É todo fenômeno natural, ou proveniente de seres humanos, que possa dar origem a uma relação jurídica ou acontecimento, voluntário ou não, capaz de determinar conseqüências jurídicas, ou de conservar, modificar ou extinguir uma relação de direito. Voluntariedade ou involuntariedade e relação com a vida humana com capacidade de gerar conseqüências jurídicas são referências essenciais para a compreensão.

Uma idéia que ganha amplitude na visão de Monteiro1, quando assinala que todos os direitos, seja qual for sua natureza, procedem de algum fato, positivo ou negativo, normal ou anormal, instantâneo ou progressivo. Alguns fatos têm origem em ações humanas e os efeitos por elas produzidos. Noutras palavras, fatos também se operam através de atos.

Ação comum pode virar notícia

Delimitada a noção de fato jurídico, tentemos entender, na essência, o que pode vir a ser fato jornalístico, que tem como caminho obrigatório a notícia, termo que o Dicionário de comunicação2 define como todo ‘relato de fatos ou acontecimentos atuais, de interesse e importância para a comunidade, capaz de ser compreendido pelo público’. Para Fraser Bond3, a ‘notícia não é um acontecimento, ainda que assombroso, mas a narração desse acontecimento’.

Para os editores da revista Colliers Weekly, notícia é ‘tudo o que o público necessita saber; tudo aquilo que o público deseja falar; quanto mais comentário suscite, maior é o seu valor; é a informação exata e oportuna dos acontecimentos, descobrimentos, opiniões e assuntos de todas as categorias que interessam aos leitores’. Segundo eles, a notícia se fundamenta no interesse público.

Tem-se, pois, que a notícia relata fatos considerados jornalísticos, vale dizer, que comportem precisão, interesse, atualidade, seja em razão do inusitado, seja do ato em si ou de seu protagonista. Vale, em última instância, o antigo bordão segundo o qual um cão morder um homem não é notícia, mas sim o fato de um homem morder o cão. É no inusitado, no curioso, na quebra do padrão de que se reveste o ato, e seu respectivo interesse público, que reside, primariamente, a essência do fato jornalístico. Nesse sentido, mesmo uma ação comum cometida, por exemplo, por um chefe de Estado, pode virar notícia.

O efeito do combustível teatral

Para Maquiavel, política é a arte de conquistar, manter e exercer poder ou governo4. Seriam, portanto, os fatos políticos, os acontecimentos ou atos direcionados à conquista, manutenção, exercício de poder ou de governo, ou, por que não dizer, também atos e fatos direcionados à conquista do poder ou governo. Há quem conceitue política como os meios pelos quais grupos sociais surgem, e são mantidos juntos, e a formação e funcionamento de governos por e para esses grupos.

De acordo com essa concepção, muitos aspectos da atividade desses grupos – entenda-se, da sociedade organizada – constituem problemas políticos5. Temos, pois, que a própria dimensão e complexidade dos problemas políticos transformam o tema em algo amplo, e por isso mesmo objeto de estudos que vão da sociologia à ciência política.

Mas, diante do singular sentido de fato político que o Estado moderno ou as distorções que as peculiaridades nacionais deram à expressão política ou fato político, teorizar sobre política neste curto espaço pode significar um inútil mergulho sobre Maquiavel, Hobbes, Montesquieu ou Rousseau. Tentar definir ou conceituar fato político implica considerar a história, mergulhar na filosofia, no campo jurídico e no próprio exercício prático da política.

Hoje, como ensina o cientista político Gaudêncio Torquato, vivemos a tristeza do Estado-espetáculo, cuja sobrecarga das demanda sociais aumenta as frustrações com o poder político, o que leva muitos a procurarem mecanismos de recompensa psicológica – os denominados contrapontos compensatórios dos momentos de crise. Assim, o Estado-espetáculo chega ao poder e se exercita teatralmente através do lúdico, do ficcional, da pirotecnia de mídia, da banalização dos costumes, formas por meio das quais se impõe diante da descrença geral. Tudo, registra aquele cientista, sob o efeito narcotizante do combustível teatral que incide sobre o psiquismo da sociedade6.

O tropeço de um político

A partir dessa perspectiva, ou dentro desse quadro de degradação social, a expressão ‘fato político’ adquiriu uma conotação toda especial, deveras distante dos ditames da filosofia, da sociologia e da ciência política. Tornou-se até, por definição, qualquer acontecimento que volte a atenção da urbis para o político, seja de forma positiva, seja de forma negativa. Serve para acusar e para defender, na medida em que o opositor a utiliza para acusar, e o ofendido, por vezes sem razão, tenta minimizar ocorrências de peso, verdadeiras operações lesa-pátria, qualificando-as como fato político. Políticos de todos os credos, com ou sem razão, têm recorrido a esse argumento, seja para defender, seja para acusar.

Feitas essas considerações sobre fato jurídico, fato jornalístico e fato político, ficam claras as diferenças. Nesse sentido, o fato jurídico pode ser um fato jornalístico, mas um fato jornalístico pode não corresponder, necessariamente, a um fato jurídico ou juridicamente importante, em especial com repercussões na esfera penal. Por mais banais que possam parecer, seguem exemplos simples que nos ajudam nessa compreensão.

O tropeço de um político ou autoridade numa escada pode ser notícia, fato jornalístico. Se, ao tropeçar, ele solta um palavrão, o caso pode converter-se em fato político. Nenhum dos dois, porém, apresenta relevância jurídica. Entretanto, se, por conta do tropeço, o mesmo político agride o seu segurança, o assunto muda de figura. O acontecimento em si passa a reunir as três características.

O anticlímax difuso

Não se trata de um jogo de palavras. O nome de um contrabandista, isoladamente, registrado na agenda de um político pode caracterizar fato político para seus opositores e ainda provocar interesse jornalístico. Mas, isoladamente, do ponto de vista do Direito, isso pode não ter dimensão de prova, nem fundamentar uma acusação ou sentença condenatória. Na medida em que um fato como esse se transforma em fato jornalístico – e aqui valem as leis de audiência e da guerra política –, é inevitável que o indivíduo passe a ter o seu nome associado ao criminoso, e, portanto, a um crime.

Diante de tal situação, a expectativa da população é de que o Estado dê uma resposta à altura. Expectativa da população, clamor público. Estamos diante de outra realidade subseqüente. Mas não faltará autoridade constituída para, em nome do povo e da moralidade, intervir. Ninguém quer ‘ser omisso aos olhos da mídia’ e muitos vivem à procura de holofotes. É aí que o Estado intervém, gerando novo fato jornalístico.

Criada a bola de neve, não faltará quem saia em busca do passado do político, de outras evidências e as contextualizações devem durar o tempo de uma audiência, aferida pelo Ibope. Para os jornais e revistas, os textos precisam ter o tamanho certo para não cansar o leitor. Gráficos, boxes7, ilustrações, previsão da pena em abstrato, os antecedentes etc. O caldo está pronto, o quadro social de indignação fervilha e, junto com ele, alimenta-se o anticlímax difuso, indefinido, insaciável, já que, ao final, chega a decepção: a contrapartida do Poder Judiciário não vem e isso não surpreende, dada a falta de substância jurídica. É a frustração geral, fermento e adubo da sensação de impunidade.

Quanto mais audiência, melhor

Com isso queremos chamar a atenção para o sentimento de impunidade que se soma à impunidade concreta, aquela decorrente da omissão e ineficiência do Estado, das falhas legais, da corrupção generalizada, do instrumental legal arcaico. Longe dessa impunidade real, surge uma nova, posto que, de boa ou de má-fé, coberturas jornalísticas sobre factóides ou mesmo fatos políticos que assumem conotações de crime não prosperam na Justiça.

A visão jornalisticamente apaixonada diante de certos escândalos, reforçados por denúncias oferecidas pelo Ministério Público às vésperas de eleições, acabam caindo no vazio. São casos em que, mesmo sem substância, movidos pelo clamor público (patrocinado pela imprensa), o Parquet interfere, reforça o fato político-jornalístico, mas que ao final se dilui no Poder Judiciário.

Afigura-se evidente que a distinção entre a natureza dos fatos não se faz presente no dia-a-dia de boa parte da imprensa. O interesse jornalístico ou político atropela, por vezes, regras sérias do próprio jornalismo. Seria o império da precariedade absoluta, objeto da pesquisa da professora de jornalismo Cremilda Medina, Notícia, um produto à venda8. Em sendo a notícia um produto, cabem as considerações óbvias do gênero: quanto mais bem embalada, mais bem ‘marketeada’, melhores serão os resultados. Quanto mais audiência e quanto mais rapidamente esgotada a edição de um jornal ou revista, melhor.

A manchete do dia

A imprensa tem e segue regras próprias do jornalismo: ‘É uma fascinante batalha pela conquista das mentes e corações de seus alvos: leitores, ouvintes e telespectadores’, no dizer de Clovis Rossi9. Por outro lado, Maurelio Menezes10, em recente artigo para o Observatório da Imprensa, alerta para o fato de que, nos últimos anos, aplica-se nas redações a mentalidade do índice de audiência, segundo a qual a informação a ser veiculada deve atender ao interesse do mercado.

Em nome do mercado, diz ele, busca-se o furo e em nome deste têm-se cometido absurdos, dos quais servem de exemplos clássicos os episódios da Escola Base e do Bar Bodega. Mas o Direito não pode ser movido por leis de mercado, muito embora juízes desavisados às vezes cedam ao clamor público em detrimento daquele.

‘A imagem de que o jornalismo representa a realidade não passa disso mesmo, uma imagem, uma impressão, uma sensação. A missão de noticiar, de contar a verdade, de apresentar os vários ângulos de uma mesma discussão, são elementos de uma grande publicidade que em muito se distancia da veraz finalidade da instituição jornalística.’11

O mercado, diz ainda Menezes, tem levado repórteres a ignorarem princípios básicos do jornalismo, vislumbrando, na busca da notícia, não os fatos em si, mas a possibilidade de conseguir a manchete do dia. E, em nome desta, vale tudo, ‘até invadir um hospital e seqüestrar um recém-nascido para mostrar que o hospital é inseguro’.

A perspectiva da cidadania

É com essa ótica que fatos, jurídicos ou não, têm sido tratados. Se, por um lado, jornalismo e política têm regras próprias, o mesmo se aplica ao Direito. Polícia e Justiça aplicam leis produzidas dentro do Estado de Direito. A produção de leis se dá por parlamentares eleitos pelo povo. O povo, por sua vez, amadurece pontos de vista com base em informações obtidas por meio da imprensa e de outros formadores de opinião. A qualidade duvidosa desse voto e dos eleitos é por demais conhecida. Mas, sejam boas ou ruins, são as leis por eles produzidas que vigem e se aplicam no final das contas. É o chamado Estado Democrático e de Direito.

Assim, longe do Estado-espetáculo, punições éticas são simplesmente punições éticas; indícios, evidências, podem não ser provas; prisão temporária tem prazo (não se trata de um jogo de ‘Polícia prende, Justiça solta’); crime é fato penal típico previsto em lei; a pena, por outro lado, tem que estar prevista em lei. Abusos contra essas regras cometidos pela imprensa podem gerar punições no Judiciário e isso não constitui censura, nem agressão à liberdade de expressão, como se alardeia.

Como quaisquer outros cidadãos, juízes, jornalistas e advogados podem ser testemunhas ou indiciados – basta que contra eles existam provas. Nada disso configura violência ao Estado de Direito, posto que este pressupõe leis concebidas e aplicadas conforme regras contidas ou inspiradas na Constituição. Elementar, não? Mas parece passar ao arrepio de muitos.

Saber distinguir os três conceitos é medida essencial. E quem garante que não sabem? E, se sabem, é proposital que alguns veículos de comunicação estejam a serviço da política e do mercado? As velhas lições das universidades foram esquecidas?

Então lhes falta autoridade moral para criticar, tentar dizer o Direito, posar de arautos da Democracia. Partamos, pois, do princípio de que não seja intencional, sobre o que vale o lembrete: distinguir os três fenômenos pode melhorar o nível da imprensa, a eficiência do Poder Judiciário, a aplicação do Direito e a qualidade do voto – o que refletiria na eficiência dos políticos e das leis – e até diminuir a sensação de impunidade. Em última instância, estabelecer essa distinção pode configurar avanços na perspectiva de cidadania.

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Delegado da Polícia Federal e jornalista formado pela Universidade de São Paulo