Em cartaz em São Paulo, Hotel Ruanda é também um filme sobre mídia. Quando e se sair em DVD, professores de Jornalismo poderão variar um pouco as sugestões, um tanto sem imaginação, para os alunos assistirem a clássicos do gênero como Todos os homens do presidente, Reds ou Montanha dos sete abutres. Além de expor ao mundo um dos horrores do século – a formação da divisão entre hutus e tutsis em Ruanda e o genocídio de 1 milhão de homens, mulheres e crianças –, a obra de Terry George discute com intensidade o papel da mídia na percepção do massacre.
O protagonista do filme é o hábil e incansável gerente do hotel Milles Collines, o hutu Paul Rusesabagina. Ele enfrenta um general e um líder de milícia hutu, negocia por telefone com o proprietário do hotel, em meio à morte iminente de sua família, dribla o desespero na tarefa de salvar também os vizinhos tutsis. Mas mostra impotência em diálogo com um cinegrafista que registrara cenas do massacre. ‘As pessoas não vão se importar’, dispara o cinegrafista, um herói da guerra, pelas informações que arriscara a vida para sacar seus furos de imagem. ‘Elas ficarão horrorizadas quando virem as imagens, mas depois vão para a sala de jantar’.
Essas pessoas na sala de jantar – a opinião pública dos países do Ocidente – poderiam ter cobrado de seus líderes um comportamento menos omisso em relação ao massacre de 1 milhão de africanos. Mas, sem motivações econômicas dos veículos para uma cobertura sistemática, praticamente não houve comoção. Essa comoção ocorre com atraso na poltrona do cinema, mais de 10 anos depois, pela espécie de jornalismo cinematográfico praticado (mesmo com a adaptação ficcional) pelo diretor inglês. Pelo cinema, nos envergonhamos por fazer, ainda que indiretamente, parte desse jogo. Como jornalistas, baixamos duplamente a cabeça branca.
Os facões dos editores
Acostumados com a alta tecnologia, achamos incrível notar que a guerra de contornos tribais – tribalismo estimulado pelos belgas, que inventaram a divisão entre tutsis e hutus para obter o apoio dos primeiros durante a invasão neocolonialista – foi também uma guerra de mídia, uma batalha radiofônica. As rádios em Kigali, como mostra o filme, influenciaram diretamente a histeria da milícia hutu, responsável junto com o Exército de Ruanda pela matança sem limites. Classificados de ‘baratas’, os tutsis eram caçados pelos facões dos milicianos, pelas balas dos militares – e pelos microfones.
Diante de tal poder midiático local, os correspondentes estrangeiros no hotel belga aparecem quase como figurantes no filme sobre mídia que existe dentro de Hotel Ruanda. O mesmo fotógrafo que deixa Rusesabagina cabisbaixo com sua ‘teoria da sala de jantar’ desafiara pouco antes um repórter, chefe da equipe, para sair às ruas. O repórter queria um carro blindado. Inexistente, num país largado ao caos. Os dois têm um diálogo ríspido. O cinegrafista o ignora, sai com o motorista e volta com as imagens. O repórter passa-lhe uma bronca. Mas o outro nem o olha. Somente coloca a fita no vídeo, em silêncio. Diante das cenas de barbárie, o jornalista liga para a sede. ‘Abram o jornal com isto’, recomenda. Mais tarde ambos deixam o hotel, durante a retirada de todos os europeus, os únicos a merecer, naquele momento, a proteção do Ocidente.
Imagens desse tipo foram exibidas com o material ficcional de Hotel Ruanda. São retratos históricos do genocídio. Mas o ponto-chave para o filme comover (e constranger, quase revoltar) está na verossimilhança. A narrativa de uma história familiar resume toda a loucura brotada naquele país e plantada por estrangeiros. Nessa obra sensível e contundente da cinematografia ocidental buscamos alguma espécie de redenção. Leitores entorpecidos tornam-se espectadores em lágrimas. Em meio ao pós-modernismo do jornalismo internacional, esmagado por abordagens numéricas e por uma hierarquização dos povos no mundo, quem mais tem procurado resgatar um mínimo de humanismo são os cineastas. Para além dos facões de editores e diretores de jornal.
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Editor da Agência Repórter Social