Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Foi o homem que mordeu um cachorro?

Aprendi nas aulas e nos livros de jornalismo que quando um cachorro morde um homem nada de mais acontece, mas quando um homem morde um cachorro, temos uma notícia sensacional. Nesta semana, a polícia militar do Rio de Janeiro matou uma criança de dez anos com um tiro de fuzil na cabeça. Foi uma ação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), portanto, do braço do estado que “ocupou” as favelas cariocas para proteger os seus moradores da violência do tráfico de drogas. Nunca a mordida do homem no cachorro foi tão forte. Mas a grande imprensa insiste em fingir que não vê.

Claro que o fato foi noticiado, mas o “sensacional” da notícia (com o perdão do mau gosto pela expressão) foi oportunamente ignorado. A inversão estrutural, de uma polícia que mata ao invés de proteger e de uma política de “pacificação” que faz com que as palavras de ordem das manifestações que pedem paz nas favelas sejam “Fora UPP”, está simplesmente fora da cobertura.

Foi assim que a matéria do Jornal Nacional noticiou a manifestação que aconteceu no sábado, 4 de abril, no Complexo do Alemão, em repúdio ao assassinato de Eduardo de Jesus Ferreira, sem ouvir os moradores, sem escutar os gritos de desespero de uma população que segue sendo personagem de uma farsa produzida na interseção entre os gabinetes do governo do estado e os aquários das redações das grandes empresas de mídia, sem seguir qualquer pista que indicasse que a vida nas favelas pacificadas não anda tão pacífica assim. Há tempos está clara a decisão dessas empresas – muito interessadas no projeto de cidade ao qual as UPPs respondem – de não atualizar a impressão e o sentimento dos moradores dessas comunidades depois de quase sete anos de implantação de uma política que, de início, trouxe muitas expectativas a uma população abandonada à sua própria sorte. Por isso, apesar das fartas manchetes que, no ano passado, contabilizaram a morte de policiais pelo tráfico na capa de todos os jornais do Rio, nenhuma matéria sobre as UPPs faz o trabalho básico de reunir as informações sobre o número de mortos por policiais nas comunidades pacificadas, o número de agressões e desmandos autoritários que uma simples conversa desinteressada com esses moradores narra todos os dias. Em outras palavras: a morte de policiais – também vítimas estruturais de uma política de embrutecimento humano e ódio social, a despeito de serem eles os agentes diretos dessa mesma política – é tratada como tendência, sinal ou sintoma de um determinado estágio da violência urbana; já a morte sucessiva de favelados por essa mesma polícia é tratada no varejo, caso a caso, sem agrupamento, como apenas o efeito colateral de uma política que protege uma “maioria” abstrata dessa população. Por um lado, não se somam as vítimas, de modo que a política em si nunca é questionada; por outro, não se pergunta como é possível justificar que uma política fira e mate tanta gente em função do combate sempre atualizado com traficantes que já tinham sido expulsos das favelas – afinal, não tinha sido esse o grande mérito das UPPs?

O balde abstrato da “violência”

É verdade que a ocorrência de casos comoventes como o do menino Eduardo obriga os jornais a ir além da simples cobertura fria. Aí vale a criatividade do jornalista, mas dentro de limites muito bem estabelecidos. Numa matéria intitulada “Inocente no alvo”, sob a retranca “Infância interrompida”, o Globo de segunda-feira, 6 de abril, tenta inserir a tragédia do Alemão numa realidade mais ampla. A pauta é o somatório de crianças mortas por policias no Rio, com números que são entremeados por falas críticas a uma cultura da violência que naturaliza o assassinato dessas crianças pelo Estado. Pode parecer bom, diante de tudo que havia até então. Mas, novamente, nenhuma palavra coloca em discussão (não digo nem sob crítica, mas apenas em debate) a política de pacificação. As mortes de crianças abordadas na matéria se fragmentam em ações diversas, que demonstram a brutalidade da polícia do Rio nas suas diferentes manifestações. Parece uma denúncia, mas não é: trata-se, no máximo, de um espasmo de desabafo, uma satisfação diante da tragédia evidente, que não faz nada além de abrir uma brecha para reafirmar o que todo mundo já sabe. A questão é o que ninguém sabe por que os jornais não mostram e não perguntam: como anda a vida nas favelas do Rio de Janeiro que foram “pacificadas”?

Muitos Eduardos morreram e muitos outros ainda morrerão: mas, para a grande imprensa, essa resposta está dada desde 2008 e se a realidade não condiz com a imagem que os jornais construíram para essas comunidades, pior para a realidade. Prova maior dessa omissão cega é que, virando a página do mesmo Globo de segunda, encontra-se a notícia que foi anunciada aos quatro cantos depois da tragédia: “Pezão confirma que Complexo do Alemão será reocupado pela PM”. Sim, é isso mesmo: um menino é assassinado, a mãe garante que o culpado é um policial e que no momento da morte não havia sequer tiroteio na favela, as pessoas vão para as ruas denunciar a violência do Estado que tem tirado a vida dos seus filhos e pedir paz em comunidades que se acreditava estarem “pacificadas” e a resposta do governo é colocar mais policiais, aumentar as tropas, intensificar o controle militarizado. Qualquer criança em fase de alfabetização estranharia o nexo entre o problema real e a solução apresentada, mas os jornalistas, mediocrizados pelas suas certezas de classe média ilustrada e acomodados no trabalho fácil de ocupar páginas e tempo dos jornais com notas oficiais da Polícia Militar e do governo estadual, não estranham, não questionam, não perguntam mais “por quê?”.

No Globo de domingo, a manifestação que aconteceu no Alemão depois da morte do menino ocupou uma tira equivalente a aproximadamente um quarto de página, em que a única fala é da mãe do menino morto, chamando a polícia de “assassina”. Parece alguma coisa, mas é muito pouco, novo espasmo sem conteúdo. Tanto que, logo abaixo, está outra matéria sobre a prisão do acusado de ter matado uma mulher num bairro da zona norte do Rio, dias antes. O acusado da primeira matéria é um policial, oficialmente armado e que age em nome da lei; o acusado da segunda é um ladrão, envolvido numa tentativa de assalto que terminou em morte. Não faz sentido nenhum disputar de quem é a dor maior pela perda de um ente querido. Mas a diferença de relevância social dos dois episódios é objetiva o suficiente e estabelecer essa distinção é tarefa de jornais e jornalistas que dizem trabalhar pelo interesse público. Mas é clara a decisão dos principais jornais, especialmente do Grupo Globo, de tratar policiais “despreparados” que cometem “erros” ou “excessos” como casos isolados de “desvio”. E, num caso como esse, para que não se chegue ao fundo do problema, vale até sugerir a semelhança com um crime comum, tudo jogado junto, no mesmo balde abstrato da “violência” que assola a cidade.

A culpa é do cachorro?

Não há dúvida de que a grande imprensa sempre defendeu interesses particulares de classe, mas a capacidade de passar por cima das contradições tem chegado a níveis inimagináveis. Na TV, dessa vez, não teve nem aquela maquiagenzinha que os jornalistas bem orientados sabem fazer nos momentos em que o rei aparentemente fica nu. O caso era muito trágico, muito claro, muito gritante: não havia espaço para relativizações, disfarces ou meias palavras. Por isso, o Jornal Nacional conseguiu a proeza de fazer uma reportagem sobre a manifestação em repúdio ao assassinato do menino sem ouvir os moradores que estavam no ato, sem procurar os movimentos sociais locais, sem entrevistar os organizadores. Mas nem esse descaso foi suficiente. No final das imagens do ato, a reportagem que tinha tapado os ouvidos para qualquer coisa que fosse além da dor “pessoal” por um “fato isolado” entrevistou um responsável pela UPP, que se declarou a favor de manifestações pacíficas (quem não é?), mas aproveitou a oportunidade para sugerir (ele ou a Globo?) que as pessoas protestassem contra o tráfico e não só contra a polícia. Desloca-se, portanto, a questão: o problema não é que a polícia mate em vez de proteger (que o homem morda o cachorro), as pessoas deveriam se indignar contra os cães que insistem em continuar rosnando. Como cachorro bravo produz medo em todo mundo, esse discurso medíocre cai como uma luva no senso comum.

Ao legitimar os argumentos rebaixados da polícia, reduzindo-se a mera assessoria de imprensa da secretaria de segurança pública do estado, o sr. Bonner e os seus atentam contra a nossa inteligência, desrespeitam a dor de quem perde filhos, parentes e amigos no mesmo vazio desumano do tráfico e do estado e jogam no ralo até mesmo as bases da sua pobre a lamentável concepção de notícia e jornalismo. Afinal, se os opressores fora da lei fossem sensíveis a reivindicações democráticas, provavelmente nenhuma “pacificação” teria sido necessária, já que os moradores de favela conquistariam sua merecida paz de forma simples, apelando para a racionalidade republicana do traficante. Não é bem assim e parece que foi por isso que tantos favelados dessa triste cidade maravilhosa apoiaram uma política que prometia libertá-los das opressões que não se resolviam com palavrórios sobre direitos. O trágico da história é que a situação se inverteu: a violência direta se institucionalizou, as reivindicações por dentro do tão aclamado Estado democrático de direito são respondidas com mais bala (de borracha e de verdade) e com campanhas difamatórias da mídia, que trata todos os indignados como coniventes ou massa de manobra do tráfico. O estado age como o tráfico. Só que, agora, com o apoio da imprensa.

Inversão da inversão?

Se nos atemos apenas à ação da imprensa, tomando como referência a definição de notícia de Amus Cummings que abre este texto, pode parecer que os jornais estão apenas invertendo a inversão própria da notícia. Só que a relação entre realidade e narrativa jornalística é mais complexa do que uma simples reprodução ou manipulação explícita. Naturalizado por editoriais dispostos a justificar todos os desvios em nome de uma política que precisava ser mantida a qualquer custo, legitimado por números produzidos a custa da omissão de outros, sustentado por um discurso do medo que promoveu a matança de pobres e negros fingindo protegê-los, o homem virou cão sem que se tivesse tempo de perceber. O processo que vivemos hoje em relação à cobertura da imprensa é sofisticado porque, quando não se denunciou a primeira morte, quando não se foi ao fundo do primeiro assassinato que a polícia pacificadora cometeu numa favela, quando não se fez (jornalisticamente) o balanço de uma política que começava a produzir o contrário dos seus propósitos anunciados, o que era inédito, improvável, fora do comum, deixou de ser. O que deveria ter justificado uma notícia “sensacional” – ainda que por uma perspectiva sensacionalista como essa que vem de um padrão norte-americano de jornalismo – caiu na rotina na realidade concreta, do público e dos jornais. Tem homem mordendo cachorro todos os dias pelas periferias da cidade. Mas quem se importa?

Em outubro de 2013, quando um outro jovem morador de favela foi morto pela polícia pacificadora do Rio, daquela vez em Manguinhos, escrevi um texto para este Observatório chamado “A imprensa que ajuda a matar”. Lembro que, na época, alguns sites o reproduziram mudando o título, o que me fez pensar se tinha sido sensacionalista ou até mesmo injusta. Mais de um ano e meio se passou, o número de mortos por essa mesma política aumentou e o comportamento dessa grande imprensa comprometida com os interesses do governador que ela ajudou a eleger não mudou em nada. Continuo respeitando os que são mais cuidadosos em estabelecer as mediações – sempre necessárias –, mas acredito que, em situações de confronto direto, como a que vivemos agora, a tarefa de quem tem lado é procurar as raízes estruturais da realidade que grita à nossa porta. Sem meias palavras, portanto: a grande imprensa brasileira continua com as mãos sujas de sangue.

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Cátia Guimarães é jornalista