Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Folha à direita da Veja

A grande imprensa é uma caixinha de surpresas. O cidadão que folhear neste domingo (28/6) a Folha de S.Paulo e a última Veja, ficará em dúvida sobre qual é qual. Talvez até se belisque, para ter certeza de não estar sofrendo alucinações.

De um lado a Veja, na matéria ‘Memórias do extermínio, admite tranquilamente a veracidade das confissões do major Curió, segundo o qual as Forças Armadas executaram a sangue-frio 41 guerrilheiros do Araguaia depois de os prenderem com vida e os terem mantido presos por variáveis períodos, e ainda acrescenta detalhes buscados em outras fontes, como se pode constatar nestes trechos:

‘Sabe-se agora que o Exército perseguiu e executou os guerrilheiros, mesmo quando eles já não ofereciam mais qualquer perigo aos militares.’

Levado para um ‘reconhecimento’

Veja entrevistou um militar que integrou a equipe de Curió – e participou da execução de ao menos três guerrilheiros. Esse experiente militar (…) aceitou contar em detalhes o que fez, contanto que seu nome permanecesse no anonimato.

`A ordem era não deixar ninguém sair de lá vivo`, rememora o militar. `Era uma missão e cumprimos o que foi determinado.` Recorrendo a uma identidade falsa, o militar (…) se infiltrou junto à população civil para obter informações sobre a guerrilha. Tempos depois, ele passou a trabalhar na `Casa Azul`, (…) onde o Exército mantinha presos e torturava os guerrilheiros capturados. A ordem, lembra o militar, era extrair o máximo de informações dos presos, (…) quase sempre por meio de torturas. Depois, assassiná-los. Tudo feito clandestinamente.

O militar entrevistado foi dos algozes do cearense Antônio Teodoro de Castro, estudante universitário de 27 anos conhecido como `Raul`. Ele conta que presenciou o interrogatório do estudante: `Ele tinha fome, vestia farrapos e estava amarelo, parecia ter malária` (…). Mesmo desarmado, mesmo famélico e doente, mesmo depois de contar tudo que os oficiais queriam, Raul não foi poupado. Logo chegou a ordem: eles deveriam levá-lo para fazer um `reconhecimento`(…), senha para matar. Curió e seus homens, entre eles o militar entrevistado por Veja, embarcaram Raul e outro guerrilheiro, o estudante gaúcho Cilon da Cunha Brun (…), num helicóptero da Força Aérea…

Cada cabeça rendia 5 mil cruzeiros

`…até as terras da fazenda de um colaborador. (…) Após uma longa caminhada, o grupo parou para descansar. Todos se sentaram. Instantes depois, Curió disse aos colegas: `É agora!` Levantou-se num átimo, mirou seu fuzil Parafal na cabeça de Raul e disparou. O corpo do estudante caiu imediatamente sem vida. Os outros oficiais levantaram-se e descarregaram as armas nos dois. `Parecia pelotão de fuzilamento`, lembra o militar. Eles tentaram cavar uma vala para enterrar os guerrilheiros, sem sucesso. Resolveram cobrir o local com galhos de árvores – e seguiram caminho. Alguns dias depois, o fazendeiro esteve com os militares e reclamou dos cadáveres. `Os corpos começaram a feder. Os animais já tinham comido quase tudo. Tive que enterrar os restos`, disse.

Aconteceram ainda outras atrocidades. O fotógrafo baiano José Lima Piauhy Dourado, o `Ivo`, tinha 27 anos quando foi capturado pelos militares. Ele fora ferido na clavícula (…). Transportado para a Casa Azul, Ivo passou por uma longa sessão de torturas. Apanhou e conheceu os horrores do pau de arara (…). Conta o militar: `O cara só gemia.` Gemia, mas, segundo a testemunha, não entregou ninguém. O depoimento do militar é perturbador: `Ele estava agonizando, pendurado no pau de arara. Alguém se aproximou e derramou um copo-d`água em sua boca. Ele morreu afogado, estrebuchando.`

O Exército também pagava pela cabeça dos guerrilheiros – e não era metaforicamente. `Tinha que trazer a cabeça mesmo, para provar que tinha matado`, lembra o militar. Cada cabeça rendia 5.000 cruzeiros ao matador. Em valores corrigidos, cerca de 11.000 reais. `Vi pelo menos umas três`, conta.’

Conversa-pra-boi-dormir

Enquanto isto, a Folha de S.Paulo foi ouvir dois militares reformados que só repisaram as mentiras propaladas pelas Forças Armadas desde os massacres, mas que foram totalmente desmascaradas a partir da redemocratização: o coronel Gilberto Airton Zenkner e o tenente-coronel Lício Augusto Ribeiro Maciel (ver aqui e aqui).

Para quê? Para nada. Deus e o mundo já sabiam das execuções. As únicas novidades das revelações de Curió foram o número exato dos executados (pensava-se que fossem menos) e a admissão da verdade por assassino categorizado.

Quem ainda quer ouvir essa conversa-pra-boi-dormir? Vejam, por exemplo, a singela justificativa do tal Zenker para o sumiço que os militares deram nos restos mortais dos guerrilheiros executados (para quem acreditar nesta lorota, estou vendendo terrenos em Marte…):

‘Numa guerra na selva, não havia muitas condições de sair carregando um corpo. Quando havia um combate, se fazia um buraco e se enterrava [o corpo] ali no mato mesmo. Depois era difícil achar.’

Uma reprimenda humilhante

Só um trecho não foi desperdício de papel e agressão à inteligência dos leitores, aquele que estabeleceu a hierarquia dos assassinos seriais:

‘De acordo com Lício, a cadeia começava no presidente da República, Emílio Médici, passava pelo ministro do Exército, Orlando Geisel, pelo general Milton Tavares de Souza, comandante do CIE (Centro de Informações do Exército), e chegava ao chefe da seção de operações do CIE, coronel Carlos Sérgio Torres.

Torres enviava as ordens para as equipes de campo, em sintonia com seu superior, Tavares, depois substituído na chefia do CIE pelo general Confúcio Avelino. `As ordens vinham de Médici, de Geisel, de Milton e de Torres. Os nossos relatórios faziam o caminho inverso´, disse Lício.’

De quebra, a Folha dominical ainda traz o colunista Elio Gaspari repetindo sua já totalmente demolida alegação sobre a participação de Diógenes de Carvalho num atentado ao consulado estadunidense em 1968 (ver aqui):

‘O cidadão que em 1968 perdeu a parte inferior da perna num atentado a bomba ao Consulado Americano recebe pelo INSS (por invalidez), R$ 571 mensais. Um terrorista que participou da operação ganhou uma Bolsa Ditadura de R$ 1.627.’

Não vou perder meu tempo refutando de novo a falácia que já detonei em março/2008 (ver aqui) e fez com que o jornal da ditabranda fosse condenado a indenizar uma militante caluniada e Gaspari levasse uma humilhante reprimenda pública de um juiz em abril/2009 (ver aqui).

À direita de Gengis Khan

‘No caso em foco, não se pode esquecer que a notícia inexata foi produzida por jornalista bastante respeitado por substancial obra em quatro volumes sobre a história recente do país, o que lhe impunha maior responsabilidade na divulgação de informações sobre aquele período.’

Já que ele insiste em repetir essa bobagem que foi buscar nos Inquéritos Policiais-Militares da ditadura militar, fantasiosos e contaminados pela prática generalizada da tortura, só me resta repetir o juízo que então formulei sobre o Gaspari: ‘Como um mero araponga, ele se pôs a revolver o lixo ensanguentado da repressão.’

E a Folha, se continuar nesse rumo, acabará não só à direita da Veja como, parafraseando o saudoso Paulo Francis, à direita até de Gengis Khan…

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Jornalista e escritor, mantém os blogs aqui e aqui