Caro ombudsman,
É profundamente lamentável constatar que a Folha de S. Paulo, diário de maior circulação e provavelmente o mais influente veículo da mídia impressa brasileira, continua ignorando e minorizando a temática dos direitos humanos.
No momento em que é celebrado o Dia Internacional dos Direitos Humanos, neste 10 de dezembro, 57 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Folha simplesmente exclui de suas reportagens qualquer menção à data ou registro do termo ‘direitos humanos’.
E faz isso mesmo tendo se referido a esta ocasião simbólica na edição de ontem (sexta, 9/12) e, mais, trazendo na edição de hoje (sábado) textos sobre o julgamento dos acusados de assassinar a missionária Dorothy Stang e sobre a questão indígena.
Cabe apontar e criticar a técnica de inversão utilizada na reportagem ‘Índios caiapós ameaçam fazendeiros acusados de lotear terras em reserva’ (reproduzida abaixo).
Não antes de lembrar à Folha que os povos indígenas constituem um dos segmentos de nossa sociedade cujos direitos humanos mais foram e efetivamente são violados e desconsiderados pelos setores econômicos e políticos dominantes no país.
O título fala de uma ‘ameaça’, reafirmada no lide, que não se confirma, de forma alguma, no texto. Muito ao contrário, a matéria mostra que a verdadeira ‘ameaça’ é representada pelas ‘pessoas armadas, que já fizeram ameaças de morte a eles [índios] e estão em busca dos recursos naturais e minerais da região’, conforme declara a fonte selecionada pela repórter.
O requinte na inversão, neste caso, se revela na escolha dos verbos e qualificativos. Como, por exemplo, o uso do verbo no futuro do pretérito (‘estariam invadindo e vendendo’, ‘agiriam no local desde setembro’) e o emprego de termos como ‘supostos’ e ‘supostamente’. A linguagem ‘jornalística’ é utilizada com o objetivo inequívoco de colocar em dúvida a realidade da ação ilegal de fazendeiros e grileiros, como se tal fato fosse algo tão improvável de ocorrer na Amazônia ou em qualquer região com abundância de terras de domínio público ou de comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas e outros).
O texto é curto, porém bastante emblemático daquilo que Perseu Abramo descreveu num pequeno ensaio publicado sob o título ‘Padrões de manipulação da grande imprensa’ (Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2003). Assim é descrito o ‘padrão da inversão’, que possui, entretanto, inúmeras variáveis:
‘Fragmentado o fato em aspectos particulares, todos eles descontextualizados, intervém o Padrão da Inversão, que opera o reordenamento das partes, a troca de lugares e de importância dessas partes, a substituição de umas por outras e prossegue, assim, com a destruição da realidade original e a criação artificial da outra realidade. É um padrão que opera tanto no planejamento quanto na coleta e transcrição das informações, mas que tem seu reinado por excelência no momento da preparação e da apresentação final, ou da edição, de cada matéria ou conjunto de matérias’.
O aviso do que pode vir a ocorrer, através da mesma fonte citada anteriormente (um funcionário da Fundação Nacional do Índio/FUNAI), apenas confirma a tradição secular vigente nestas terras, graças sobretudo à ‘lei do mais forte’: ‘a Funai atuando sozinha pode não controlar os índios e pode ocorrer um massacre dos caiapós‘. [destaque meu]
Ou seja, a possibilidade de (mais) um massacre de comunidades indígenas é deliberadamente invertida pelo jornal e transformada de modo a se apresentar como ameaça aos fazendeiros.
Defesa mais competente da propriedade privada, por ser bastante clara e ao mesmo tempo sutil, talvez nem a Tradição Família e Propriedade (TFP) consiga promover.
O deplorável é verificar, diuturnamente, que esta defesa inocultável, que se coloca acima de quaisquer princípios, inclusive dos direitos humanos consagrados internacionalmente, é a tônica não apenas da Folha de S. Paulo, mas da grande imprensa (incluindo aqui o jornalismo de rádio, TV e internet) no Brasil.
Ao menos esta Folha possui um canal ‘supostamente’ aberto às críticas dos leitores, o que nos faz ‘supor’ que este veículo ‘estaria’ a serviço do avanço da democracia entre nós, já que esta ainda não passa de mera alegoria para esconder a natureza golpista e abjeta das classes hegemônicas em nosso país. Ou teria integral razão a tese do honorável professor Bernardo Kucinski, sobre o ‘jornalismo vampiro’, que seduz e dissimula, da Folha de S.Paulo?
Atenciosa e indignadamente, Rogério Tomaz Jr. [Leitor, jornalista e militante de direitos humanos, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social]
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São Paulo, sábado, 10 de dezembro de 2005
(
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1012200522.htm)QUESTÃO INDÍGENA
Área no Pará tem 3 mi de ha preservados
Índios caiapós ameaçam fazendeiros acusados de lotear terras em reserva
ADRIANA CHAVES
DA AGÊNCIA FOLHA
Índios da etnia caiapó ameaçam enfrentar fazendeiros que estariam invadindo e vendendo terras dentro de uma extensa área já demarcada e homologada pelo governo federal para os indígenas, em São Félix do Xingu (1.074 km de Belém).
Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio) de Marabá (568 km de Belém), a área indígena tem 3,284 milhões de hectares de terra preservados. A reserva passa por municípios como Redenção, Ourilândia do Norte e São Félix do Xingu, onde se concentra o conflito entre os caiapós e supostos fazendeiros e grileiros.
Aproximadamente 2.000 caiapós habitam a região. ‘Tememos um confronto dos índios com pessoas armadas, que já fizeram ameaças de morte a eles e estão em busca dos recursos naturais e minerais da região’, disse o administrador regional da Funai, Eimar Araújo.
Uma equipe da Funai esteve na área nesta semana e localizou 12 pessoas supostamente ligadas a fazendeiros ilegais que agiriam no local desde setembro, loteando e vendendo terra indígena. Os técnicos levantaram os nomes das pessoas e apreenderam uma moto e um jipe.
‘O problema é que a Funai não tem poder para autuar essas pessoas. Seria necessária uma ação conjunta com o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e a Polícia Federal para a retirada dos invasores. Além disso, a Funai atuando sozinha pode não controlar os índios e pode ocorrer um massacre dos caiapós’, afirmou Araújo.