Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Folha Online cria corvos

Não posso deixar de expressar a minha indignação com a notícia estampada na Folha Online do dia 14 de junho de 2005, às 18h29, intitulada ‘Fim de anistia é passo ‘importante’ contra impunidade’, diz Kirchner.


Nesse 14 de junho, a Suprema Corte de Justiça argentina declarou inconstitucionais as leis de impunidade que protegiam os militares genocidas no país do Sul, leis arrancadas ao governo Alfonsín a ponta de fuzil.


Fuzis apontados contra a população civil que, em volta dos quartéis sublevados contra os processos movidos pelo governo contra os torturadores, seqüestradores, ladrões e assassinos fardados, atirava pedras aos carrascos, quase vinte anos atrás.


Passamos quase 30 anos insistindo em que se investiguem os crimes da ditadura. É uma hora de júbilo para a humanidade. Não apenas para os argentinos, não apenas para os movimentos de direitos humanos. Não apenas para a esquerda.


A Folha Online, entretanto, frisa no parágrafo quarto do artigo em pauta que as tais leis de impunidade declaradas inconstitucionais pela Justiça argentina protegiam ‘centenas de militares no país – evitando que fossem processados por seqüestro, tortura e assassinato contra integrantes da esquerda entre os anos de 1976 e 1983, durante a ditadura militar.’


Numa hora como esta, é imprescindível evitar que oportunistas e aproveitadores de toda laia distorçam as informações, tentando levar água a seus moinhos. Em primeiro lugar, é necessário caracterizar com precisão quem foram as vítimas da ditadura militar: foi a humanidade, o conjunto da população civil. Não ‘a esquerda’, como suspeitamente desliza o artigo que comento.


Amedrontamento coletivo


Foi uma das linhas de defesa dos genocidas, recuperada pela matéria que censuramos, dizer que o alvo da repressão ilegal foram ativistas e militantes de esquerda, como coloca o texto da Folha. Toda uma linha de defesa da matança e aterrorizamento da população, ainda hoje veiculada por grande jornal argentino, reza por essa cartilha.


Notório defensor da matança videliana, um conhecido jornalista de Buenos Aires não perde oportunidade de dizer que os argentinos fomos salvos pelas forças armadas de nos tornarmos um novo soviet. A Folha Online retoma essa linha, muito disfarçadamente, num estilo que lhe é bem peculiar.


Mais insinua do que aponta, mais enlameia do que decanta. Não vamos permitir, os que somos sobreviventes – e todo argentino o é – da maior operação de amedrontamento coletivo em toda a história da América, que um diário qualquer, a serviço de interesses inconfessáveis, tire partido do sacrifício que nos foi imposto.


A estratégia do terror


Os alvos da repressão ilegal, dos campos de concentração e dos centros clandestinos de detenção que funcionaram durante a ditadura de Videla e Cia. foram as lideranças sociais (sindicalistas, jornalistas, mobilizadores, militantes de base), mas, em 90%, os fuzis do gloriosíssimo Exército Argentino apontaram para a população em geral.


E aqui me desculpem todos os que inutilmente trataram de fazer sua a reivindicação da Justiça que hoje começamos a vislumbrar, porque há estudos insuspeitos, como o levantamento da Comisión Nacional sobre Desaparecimiento de Personas (Conadep), o informe da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH-OEA) e o relatório de 1997 da Opas/OMS (Organização Mundial da Saúde), que atestam o que digo.


Na Argentina, a intimidação foi de massa. Evidentemente houve a seletiva, individualizada, mas o grosso apontou para pessoas que nada tinham a ver com qualquer movimento revolucionário ou organização popular, e que apareciam como alvejadas por acaso ou por acidente.


Hipótese esta afastada pelos estudiosos da Opas/OMS, que revelam a estratégia do terror nas suas minúcias, qual fosse a de manter a população como um todo num estado de amedrontamento que impossibilitasse qualquer reação, qualquer organização de resistência.


Atentos e vigilantes


Em segundo lugar, é necessário destacar que a ditadura militar contou com um vasto contingente civil – embora certamente muito incivilizado – de cúmplices e apoiadores: empresários, banqueiros, capelães e bispos, jornalistas, intelectuais, estudantes, que tiraram proveito da caçada humana hoje no banco dos réus.


Em nome dos nossos mortos, daquela parte nossa que morreu e hoje ressuscita ao sabor do triunfo conseguido pela massa da população organizada em inúmeras frentes e iniciativas, que ninguém pode querer monopolizar em benefício particular, denuncio a manobra confusionista que pretende continuar legitimando o genocídio.


Somente a verdade poderá trazer paz a um país enlutado, socavado na sua mais íntima constituição (pessoal, familiar, social, política), um país que a partir de 14 de junho de 2005 pode outra vez começar a se pensar a sério. Não pode haver vida sem justiça.


A imprensa venal antigamente clamava ser ‘vingança’ o nosso apelo. Hoje pretendem fazê-lo passar por uma causa pequena, esquerdista.


Cuidado! Estamos atentos e vigilantes.

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Sociólogo, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Saúde e Sociedade do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal da Paraíba, autor de Max Weber: ciência y valores (Buenos Aires: Homo Sapiens, 2005), integrante da base sindical da ADUFPB-JP