Weiten (2001), analisando o processo de persuasão, afirma que uma informação repetida torna o receptor mais suscetível a acreditar nela. Estamos aparentemente condenados às repetitivas categorias da personalidade segundo a auto-ajuda: desta vez, o foco foi um estudo sobre o pessimismo e otimismo. ‘O gene do otimismo’, matéria da Veja (6/5/2009) assinada por Leandro Beguoci, foi a última dessa safra, em que, num país geneticamente abençoado e sem crises externas (pois, segundo a matéria, somos otimistas, pelo menos mais que os ingleses), um sistema fechado genoma-ambiente luta por adaptação.
O detector genético é tecnologia voltada para nosso bem-estar. A novidade com relação às demais técnicas médicas que passam pelo nosso corpo é o fato de não diagnosticar apenas o corpo presente: coloca-nos debaixo dos equipamentos perguntando infantilmente quem seremos, como nos tornamos quem somos. Está aberto o terreno da superstição. A sorte-azar complementa o jogo: este médico pode ser uma espécie de dr. Kevorkian, com a sua determinação letal, ou uma Madame Natasha cujas cartas prevêem possibilidades de sucesso, com felicidade kitsch para os otimistas e câncer para os pessimistas.
O mercado jornalístico de modo geral, como analisou Tognolli (2004), segue a reboque das discutíveis intenções de popularização das pesquisas por parte dos próprios cientistas (não nos esquecendo que estes também são objeto de seu tempo e sua cultura). Um pouco de genética aprendida no ensino médio completa a familiaridade do leitor com a linguagem genetizante da imprensa. A satisfação diante do meio-entendimento para com uma meia-genética parece equivalente à possível satisfação de saber de si todos os meio-fatores genéticos, comportamentais que existem. Tantos que talvez Madame Natasha não sofra arranhões, graças à inépcia da concorrência. Cabe ser marxista e considerar que talvez o todo seja maior que a soma de suas partes, e que interações entre elementos costumam ser mais complexas que os fatores isolados.
Fatores estatísticos firmes e sólidos
A nova onda é adaptar a linguagem cotidiana, na qual a auto-ajuda se inspirou e entrincheirou – corroborando termos como viciado, otimista, pessimista, violento – para o estudo da genética populacional. A forma pela qual brasileiros e ingleses interpretam testes pueris criados pela psicologia cognitiva, tais quais apertar botões como sinal de concentração em mensagens positivas, negativas ou neutras, é vista como um confiável indicador de traços de personalidade otimista ou pessimista. O hábito desculpa o monge: descrevendo a pesquisa, Veja afirma que os participantes do levantamento, no Brasil e na Inglaterra, ‘foram submetidos a um teste bastante usado para avaliar a atenção seletiva’ (Beguoci, p.133, grifo nosso). Então a repetição é sinal de confiabilidade? O texto constitui-se numa seqüência de asserções sem conexão interna, com aspecto de leitura recreativa, mais dependente da propensão do leitor a acreditar que aptas a convencê-lo por meio do raciocínio rigoroso.
O trecho não déia de expressar, contudo, o fato de que algumas psicologias positivistas criadas no início do século passado, pela sua submissa unidade metodológica com as ciências da natureza, agora se confundem com elas. Retirássemos as qualificações profissionais do texto, não se saberia se os cientistas que encabeçaram o dito estudo, João Ricardo de Oliveira e Mayana Zatz, entre outros, são psicólogos ou não. Às tais psicologias interessava, principalmente, reproduzir os passos das ciências da natureza. Foi o caso de James McKeen Cattell (1860-1944), um dos fundadores da psicologia diferencial, que se propôs a meta de distinguir os seres humanos (mas terminou igualando-os via testes de personalidade).
A psicologia diferencial acabou fracionando os homens em fatores, em tendências; como resultantes da somatória de vetores genéticos – fossem drives, impulsos, ou inteligências construídas por cérebros geneticamente bem dotados. O positivismo sacrificou a complexidade do comportamento, do pensamento, da personalidade em prol de um método apropriado à normalização e à massificação do animal humano: era mais importante que as ciências humanas fossem quantificáveis, do que atentas à história de seu objeto; que tudo pudessem converter em fatores estatísticos aparentemente firmes e sólidos. Como o gene do otimismo.
O princípio do conhecimento de si
Hoje, a coisa se sofisticou: softwares com operadores instruídos cuidam das correlações entre fatores, que surpreendem, sobretudo, pela simplificação das categorias psicológicas definidas. A imprensa difunde essa pobre psicologia atomística e liberal em termos facilmente apreensíveis para o gosto dos leitores: quem passa mais tempo olhando imagens positivas é otimista. Do contrário, é um pessimista (sádico, perverso ou simplesmente entediado não são termos que apareçam nesse universo repleto de categorias oriundas da auto-ajuda).
É uma mera, uma simples preocupação, mas creio que esse tipo de estudo (e sua difusão) tendem a fechar os horizontes da linguagem numa ancestralidade sem história. No máximo, mostrando um perfil familista, determinado pela linhagem dos cruzamentos entre indivíduos de uma mesma espécie. A Darwin coube o mérito de colocar-nos definitivamente no reino animal. À imprensa conservadora, como a Veja, o demérito de atirar certezas sobre os leitores como se atiram bananas selecionadas aos únicos primatas que podem duvidar delas, de si, da Terra, da inteligência dos seus pares ou da autoridade científica.
Mas essa relação imprensa-leitor lembra-nos o paradoxo da psicologia experimental: é o animal que controla o experimentador, ou o inverso? Os leitores não são os verdadeiros ditadores da experimentação midiática? Para a burguesia e seu espelho, as classes médias, parcialmente oriundas da gentalha da Idade Moderna, os genes podem ser o limite da alteridade e o princípio do conhecimento de si. O homus geneticus se reduz à família, a alguma mutação identificada nos exemplares de nossos ascendentes que um dia acasalaram. Nos genes, e não nas árvores genealógicas da aristocracia, está a possibilidade de explicações científicas para a existência e de previsão segura para o nosso sucesso.
A melancolia em nossa cultura
Esse determinismo genético da vida psíquica parece-me superstição, em mais uma de suas variantes: rebento da ignorância, da incerteza. Elas aí estão, fazendo das suas, ou seja, trocando os efeitos pelas causas e mostrando o conhecimento que não têm. Nosso tempo contém superstições para legiões de crentes de toda classe, origem e preferência informativa. Mas a genética, casada com a psicologia diferencial, não parece ter melhor futuro que a da Madame Natasha, minha cartomante fictícia: tantos são os genes comportamentais descobertos a cada dia, que Madame poderia prever: as tendências supostamente determinadas por eles tendem a se anular mutuamente. O que está nas descobertas do ‘genoma psicológico’ é um futuro niilista para nosso desejo de saber: tudo pode acabar numa balança de prós e contras genéticos para cuja interpretação o cliente precisará contar com o único aspecto da condição humana ausente de toda a genética moderna: o arbítrio (sempre profundamente determinado) do interpretante. O pano de bolinhas, com as suas isoladas figuras tingidas no algodão, não fazem as ceroulas, nem os genes isolados constituem os homens, na sua singularidade e sua história. Veja-se Vigotski (1994), meu mestre e grande estudioso do papel da cultura na formação humana.
Uma tendência das ciências psi-positivistas e da genética psicológica é admitir que há, no sujeito, algo de imutável nos problemas que elas identificam como doenças mentais: algo que se precisará administrar, uma loucura resistente à interpretação, para cá da imperfeição genética ou ambiental. Creio que o determinismo aí presente, tão popularizado na mídia, é uma das razões da melancolia em nossa cultura, pois não abre o céu das artes, da filosofia, da vida numa comunidade politizada: prende o sujeito aos porões de uma individualidade familiar reduzida ao formato não-humano das células e seus defeitos. Regularidades biológicas sem símbolo nem linguagem criadora.
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Professora universitária, doutora em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano (USP)