Dois episódios recentes, aqui no sul, ilustram um estado de espírito marcado pelo ódio e intolerância que me leva a perguntar o que ocorreu para autorizar semelhante comportamento. A pergunta é pertinente porque episódios iguais, ou piores, estão ocorrendo em todo o país. Ambos, ocorridos aqui no sul, envolvem haitianos. No primeiro, um leitor de Zero Hora critica a vinda da haitianos com grau de escolaridade “baixíssimo”, segundo as palavras do próprio, que assim supõe esconder o seu racismo. A falta de discernimento do referido leitor é tamanha que ele pensa ficar livre da pecha de racismo por afirmar não ser racista mesmo escrevendo um texto racista do começo ao fim. Tal episódio foi matéria na revista CartaCapital, onde Djamila Ribeiro discorre sobre ele e questiona a empresa jornalística por abrigar um discurso de ódio e, pior, criminoso, em seu jornal – ver aqui.
O outro episódio se deu em um posto de gasolina na cidade de Canoas, vizinha a Porto Alegre, com um sujeito vestido com uma roupa de estilo militar camuflado onde se destaca uma caveira similar ao símbolo do Bope. Óculos escuros, estiloso e tom hiperarrogante que, com a ajuda de alguém, filma sua ira contra um frentista de posto haitiano. A falta de civilidade e respeito ao outro, visto como um ser indigno de viver e trabalhar em nosso país, é denunciada como um contraste e uma afronta aos “milhões de desempregados” brasileiros. Como disse o comentarista da TV Record em resposta a este disparate: “O que um sujeito destes diria dos milhões de brasileiros que vivem no exterior, não importa se legal ou ilegalmente?”
Casos como estes se inserem na desigualdade social, bem caracterizada pela ideia-chave contida no conceito de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Nesta separação está configurado o grau de distanciamento a ser obedecido por todos os atores sociais. Qualquer ruptura neste paradigma será objeto de duras sanções e penalidades. É lógico que durante toda a nossa história este modelo sofreu as injunções das mudanças culturais, sociais e políticas, com inevitáveis assimilações por parte dos dominadores deste processo civilizatório. Sempre houve resistência maior ou menor – até o golpe de 1964 e tentativas de golpe anteriores, patrocinadas pela Casa Grande – dependendo do grau de avanço social da senzala.
Mais que os vícios, as virtudes
A diferença é que antes do advento da internet a base de apoio popular da Casa Grande delegava aos atores principais da cena política a função de luta pelos seus valores conservadores e reacionários e hoje manifesta seu pensamento antidemocrático com o alargamento do espaço democrático propiciado pelas chamadas mídias sociais.
A legitimação e, indiretamente, a autorização para manifestações de hostilidade ao estrangeiro, como estas duas ocorridas aqui no Rio Grande do Sul, tidas como desqualificadas e, portanto, não bem-vindas, obedece a um script fiel a uma pregação feroz e sem trégua onipresente nos jornalões, nos noticiários de TV e no rádio contra o governo federal e seu partido. Pregação que me parece transcender a crítica republicana, dado o grau de maniqueísmo revelador de um único critério não-republicano: “Aos amigos, tudo. Aos inimigos, o rigor da lei.”
Daí a legitimação e, indiretamente, a autorização para gestos e comportamentos hostis e violentos como os dois casos narrados. Aliás, no episódio do frentista haitiano, o sujeito termina o seu desfiar lançando a culpa por todas as mazelas do país, inclusive a vinda dos haitianos, nos comunistas, é claro! Comunistas que governam o país, presumo.
Portanto, mais do que os vícios, no caso a corrupção, são as virtudes, o alvo principal da luta do pessoal da Casa Grande, cujo principal núcleo ideológico é a grande mídia, como bem disse Bernardo Kucinski no programa Espaço Público, conduzido por Paulo Moreira Leite, exibido em 17/3/2015 e reproduzido no Observatório da Imprensa em 31/03/2015. Virtudes representadas pelos avanços no terreno da igualdade social propiciado por programas como o de cotas raciais para as universidades, os programas de financiamento para ingresso em universidades, o programa Mais Médicos, a legislação em defesa dos direitos trabalhistas das empregadas domésticas e tudo aquilo que redundou em diminuição da distancia real ou simbólica entre a Casa Grande e a Senzala.
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Jorge Alberto Benitz é engenheiro e consultor