Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Globo investe contra soberania sul-americana

O Globo vai em cima do assunto calote sul-americano nacionalista venezuelano, boliviano, equatoriano e paraguaio que diz estar em marcha contra o Brasil. Ao todo, são R$ 5 bilhões. É um negócio, a priori, dado. Em cima da pressuposição, projetam-se conclusões abstratas baseadas em fatos pretensamente concretos que ainda não aconteceram, mas tidos como se já acontecidos. Dissemina-se a versão antes do fato emergir e gerar conseqüências normais que estariam abertas às ações políticas.

O fato não acontecido, mas tratado como se fosse algo palpável, gerando produtos políticos e econômicos aprioristicamente especulados com gosto de guerra – eis a tática. Vem aí um calote de R$ 5 bilhões. Cria-se animus nacional contra o ataque emergente e na bica para acontecer. Uma beligerância calculada.

O alvo não está aparente, mas latente.

Os governos vizinhos do Brasil, sob ondas políticas nacionalistas, que crescem no rastro do estrondo neoliberal global, estão tendo um encontro com sua própria história, buscando, na investigação democrática, colocar os fatos na mesa, a fim de serem apreciados social, política e economicamente.

Auditagem de dívidas

Exercitam o que representa horror ao status quo, ou seja, a soberania nacional plena. Buscar tal alternativa é puro populismo. Os governos querem exercitar a soberania, investigando seu próprio calcanhar de Aquiles, suas dívidas e os interesses existentes, historicamente, em torno de sua formação, multiplicação e escravização econômica. Não pode de jeito nenhum.

Caminham nessa direção, não porque queiram, mas porque estão sendo impulsionados por ondas de movimentos sociais politicamente organizados, em grau crescente, em toda a América Latina, e não só.

Foram tais movimentos, por exemplo, que levaram à Casa Branca, pela primeira vez na história, um negro. Obama é fruto de políticas nascidas em núcleos sociais comunitários, que ganharam impulsão política extraordinária no contexto da tecnologia da informação na era do conhecimento. Milhares de núcleos comunitários espalhados por todos os Estados Unidos em favor dele fizeram a diferença. Emergiu, forte, o poder político comunitário digital.

Essa onda gerou sistema de financiamento de campanha à margem dos esquemas políticos institucionalizados, na base da corrupção etc. Criaram nova ética. Movimento irresistível populista determinado pela ciência e tecnologia a serviço da comunidade que tende às investigações populistas – perigosas, assustadoras, para os credores, cujos abusos são patentes.

A surpreendente entrevista de Roberto Troster, no Estadão (01/12) demonstra essa evidência. Ex-economista chefe da Federação Brasileira de Bancos, Febraban, ele relata práticas de abusos dos credores no momento em que o país passa dificuldades, considerando absurdas as atuais taxas de juros vigentes no país.

Anti-populismo, pensamento bancocrático, atacando o populismo, pensamento nacionalista, favorável às investigações necessárias para comprovar as acusações de quem conhece por dentro a prática dos abusos. Para tal anti-populismo, a onda dos movimentos sociais anuncia tempestades em forma de auditagem de dívidas.

Interesses externos e internos

Novo poder emergente, cuja base são movimentos sociais em expansão, como previu Guevara, está levando os governos sul-americanos nacionalistas do Equador, da Venezuela, da Bolívia e do Paraguai para o mesmo caminho da mobilização populista-barackobamiana que apavora a grande mídia.

Seria o mesmo populismo de outrora, com caciques políticos controlando de cima para baixo, ou outro populismo, já que a história não é estática, mas dinâmica e dialética?

O Eldorado glauberiano, com São Jorge do céu esporando o dragão da maldade contra o santo guerreiro em transe, está aí, nessa busca dos governos neonacionalistas lançando-se à investigação sobre a relação Estado-banqueiros na era da oligopolização geral do capital.

Os governos vizinhos que já estão dando calote no Brasil, segundo o Globo, estão fazendo aquilo que Getúlio Vargas fez em 1931. Logo depois de assumir em cima do cavalo dos tenentistas golpistas para destronar governos velho-republicanos, igualmente golpistas, Getúlio apertou o pescoço das empresas multinacionais americanas distribuidoras de gasolina. O Departamento de Estado, segundo o historiador Moniz Bandeira, em Presença dos Estados Unidos no Brasil (2005, Civilização Brasileira, pag. 328), ouriçou e mobilizou o poder interno, isto é, a mídia, para preservar os interesses que vinham desde o Império, passando pela República Velha.

Populismo puro tentar desalojar tais interesses.

Na investigação sobre os endividamentos públicos interno e externo dos governos está a mina da corrupção. Mexer é populismo puro. Temem os investigados que sejam encontrados e expostos os mecanismos financeiros traçados pelos interesses externos e internos no contexto do poder nacional. Devidamente acautelados por uma superestrutura jurídica que atua sob a influência do capital em sua dimensão máxima, especialmente nos países de economia dependente, como são, historicamente, os da América do Sul.

Populismo inaceitável

Ora, O Globo, assim como fez no tempo de Getúlio, quando a nação iniciava busca de sua soberania, faz, neste momento, com os governos sul-americanos de linha getulista, em suas tentativas de alcançarem a independência econômica nacional e sul-americana, pressuposto, fundamental, para a integração continental.

Mexer com a dívida, investigá-la? Satanás.

Marx destacou que a dívida externa é instrumento de dominação internacional. Inicialmente, dinamiza; em seguida, com os juros, escraviza. Keynes, idem, ao ressaltar, na mesma linha, que a deterioração dos termos de troca, na relação entre países ricos e pobres, é dada pelo endividamento do país pobre na moeda do país rico, que cobra senhoriagem em forma de dividendos juramentados.

Investigar essa forma de exploração é tentativa revanchista, populista.

Os governos nacionalistas sul-americanos, neste momento, se dispõem a pagar o preço para investigar esse assunto cabeludo, tendo em sua retaguarda o apoio e a cobrança simultânea da sociedade.

O Globo antecipa o calote e parte para o ataque, criando ambiente de controvérsias cujos resultados são os que desejam os eternos dominadores do continente, ou seja, manter os dominados divididos. A grande mídia, assim, está partindo para o mesmo procedimento adotado quando a Igreja Católica e os partidos de esquerda, na Era FHC, se armaram para concretizar o plebiscito sobre a dívida nacional. Populismo inaceitável.

Calote ou renegociação?

O tema foi totalmente implodido pelo poder midiático, que atua como oligopólio sob impulsão das forças econômico-financeiras que bancam o próprio poder midiático.

Escândalo: CPIs para investigar dívidas públicas, empreiteiras, bancos, os agentes que se misturam, para produzir as grandes obras, agrupados em interesses que se lançam ao governo tendo por caução os congressistas e suas emendas parlamentares que carreiam dinheiro público para os empreendimentos contratados? Nem pensar. Populismo, manifestação política de atraso.

A reportagem de O Globo que antecipa o calote de R$ 5 bilhões é menos informação e mais ficção. O calote, diz o lead da matéria, é o objetivo principal. Tal afirmação não é ancorada em nenhuma declaração de entrevistado de peso, amparada em fatos reais, expostos por evidências concretas, para gerar reportagens instigantes. O próprio embaixador brasileiro no Equador, semana passada, no Senado, descartou as categóricas informações midiáticas de efetivação de calote. Viu exagero no contexto.

Mas, indiscutivelmente, os calotes vão em frente, estão sendo preparados pelos governos paraguaio, boliviano e venezuelano, simplesmente porque resolveram auditar dívidas nacionais. Populismo escandaloso.

Exercer a soberania nacional, do ponto de vista da grande mídia, seria declarar guerra.

Representa, para a grande mídia, insuportável acinte o desejo de saber tudo sobre a dívida nacional. Certamente, viria ao ar tudo, numa grande investigação, inclusive os intestinos do poder midiático que, nessa crise de crédito, podem estar se deteriorando.

Calote ou renegociação de compromissos?

A velha e sábia direita financeira

Os governos sul-americanos, se depender da grande mídia, estariam proibidos de ter encontro decisivo com seus credores. Isso é bom ou é ruim para a democracia? Implica calote inevitável, ou possíveis e prováveis negociações?

O mesmo ocorre relativamente aos super-endividados consumidores americanos frente aos bancos que esfolaram suas rendas na especulação que transformou seus ativos em pó e detonaram a base da riqueza nacional, a capacidade do consumo interno via crédito direto ao consumidor.

Se o dólar tinha por lastro essa garantia e ela se perdeu, a sua ressurreição somente se daria pela negociação ou pelo perdão, pois, do contrário, o império cairia.

John McCain perdeu a guerra, mas seu discurso está ganhando a paz.

Durante a campanha, ele pregou perdão de dívida, o que os jornais sul-americanos, na linha do Globo, chamam de calote. Não mencionaram numa linha sequer o populismo maccainiano americano.

Adam Smith, o pai da economia clássica, o pregador das leis do mercado, por saber que as contradições do sistema levariam aos gargalos financeiros e às brutais concentrações auto-destrutivas de renda, destacou que dívida pública, necessária para equilibrar oferta e demanda, a partir de gastos governamentais que complementam a insuficiência consumista privada, não se paga, renegocia-se.

McCain, representante da velha e sábia direita financeira, sabia o que falava. Tocava direto na história americana. Em diversas ocasiões, no século 19, o governo americano deu o calote no mundo.

Corrupção é modernidade?

Nixon, em 1971, ao desvincular o dólar do seu lastro, o ouro, deixando o papel flutuar, deu tremendo beiço na praça. É uma prática histórica dos Estados Unidos. Característica que se acentuou diante da conquista do poder monetário global, que impõe senhoriagem geral a seu favor.

No entanto, se os governos da América do Sul, que os comentaristas da grande imprensa chamam de subcontinente, entram pelo mesmo caminho, ou seja, se questionam diante dos seus credores as suas práticas, os comportamentos dos antecessores que adotaram posições excessivamente laxistas diante da banca e dos procedimentos públicos no relacionamento com ela etc., a grande mídia entra em campo feroz, esbravejando, antecipando, manchetando desastres iminentes, a fim de criar um clima de confronto.

Vêm por aí pregações caloteiras ou negociações, acertos de contas, diplomaticamente, negociados?

Barack Obama já está na de McCain. Vamos continuar aceitando o juro alto depois que ex-diretor da Febraban reconhece que os banqueiros cometem abusos excessivos com a taxa de juro?

Adam Smith já está em ação nos Estados Unidos. O excesso de dívidas das famílias americanas alavancadas pelo crediário em relação a sua renda real demonstra, como inúmeros comentaristas ressaltam, a implosão geral dos mecanismos de criação e transmissão da riqueza pela moeda e seu poder de gerar juros pela via do crediário. O desendividamento familiar tornou-se uma urgente necessidade econômica para o capitalismo americano. McCain na cabeça.

Se essa estrutura entrou em crise total nos países capitalistas cêntricos, colocando em pé de guerra consumidores e credores, por que não ocorreria o mesmo fenômeno na relação de dependência financeira dos governos sul-americanos, no momento em que governos nacionalistas populares sobem ao poder, em nome da defesa da soberania nacional?

Não, não pode, é populismo.

O poder midiático não quer saber dessa discussão em profundidade. Não é do interesse de tal poder discutir por que uma obra, como a de San Francisco, no Equador, tocada pela Norberto Odebrecht, com recursos do BNDES, ou o túnel que virou cratera em São Paulo, também, tocado pela Odebrecht, acabaram custando o triplo do preço inicialmente contratado.

Por quê?

Para dar essa resposta, é preciso expor os interesses em jogo, na auditagem do processo de endividamento. Populismo. Apelar para o populismo é forma de aceitar, intrínseca e inconscientemente, a corrupção. Busca afastá-la com a acusação de um neologismo político histórico pretensamente decadente. Querem dizer, então, que a corrupção é a modernidade?

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Jornalista, Brasília, DF