Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Governantes no colo dos conservadores

‘Os direitos humanos são direitos dos pobres.’ Foi com essa frase que o jurista Hélio Bicudo iniciou a quarta edição de Hora da Coruja (20/3/2010), programa produzido e dirigido pela filósofa Francielle Chies na ALL TV.

Não há como não concordar com Hélio Bicudo. As vítimas de injustiças e maus tratos do Estado, na maioria dos países do mundo todo, realmente são os mais pobres. São eles que caem de modo justo ou mesmo injusto sob o que seria a guarda do Estado, mas que se transforma no inferno do Estado contra suas vidas. Assim, os mais pobres deveriam ser os primeiros a somar forças conosco, os que se dedicam a tornar o Estado menos aleatoriamente agressivo. Todavia, não é isso que ocorre. Não raro, muitos entre as classes médias e mesmo entre os mais pobres somam opinião com a direita política, que incentiva o Estado a se aparelhar materialmente para o combate ao crime sem olhar para a contrapartida, a ação de tornar o policial um agente preparado antes para fazer a justiça funcionar que para fazer as portas se abrirem à barbárie.

Qual a razão das pessoas agirem assim, hostis aos ‘direitos humanos’? Uma resposta imediata, que muitos insistem que é a melhor, diz que a mídia é culpada pela mentalidade favorecedora da barbárie. Será verdade?

Poder de polícia às Forças Armadas

Sabemos bem que boa parte da mídia atual, quando fala da atuação dos militantes dos ‘direitos humanos’ os associa ao rótulo de ‘pessoas que protegem bandidos’. Os programas de TV e rádio sobre crimes e atuação policial atingem muitas pessoas e, não raro, colaboram para formar junto delas a opinião de que elas próprias nunca vão estar ‘do lado de lá’, isto é, na ‘marginalidade’, e que somente ‘o outro’, ‘o bandido’ é que estará nas garras da ação punitiva do Estado. Além do mais, incentivam o ódio e a vingança dizendo mentiras como, por exemplo, ‘o bandido vive na cadeia como se fosse um hotel’ e coisas do gênero. Se isso não bastasse, esses programas voltam os olhos de modo sempre pouco claro em relação à vítima, colocando-a em uma situação de comparação pouco cabível com o criminoso: o que é acusado aparece na mídia algemado, sem camisa e apanhando, porém ao mesmo tempo a mídia desconsidera a imagem e localiza a vítima, que aparece na TV como eternamente injustiçada – mesmo quando o criminoso é preso e punido. Para esse tipo de mídia, não há pena finita, toda pena tem de ser infinita. Não vale o criminoso terminar sua pena, ele precisa sofrer e sofrer e sofrer. No limite, a mídia se esquece da nossa noção moderna de justiça e apela para a idéia do ‘olho por olho, dente por dente’, isso quando não incentiva a tal ‘justiça pelas próprias mãos’, ou seja, a vingança pura e simples e a perigosa barbárie.

Não temos que isentar a mídia do que ela tem de responsabilidade por essa situação de má educação popular a respeito do que é e do que não é justiça. Mas, não há razão para se acreditar que só a mídia é responsável por isso. Uma parte das pessoas que deve e pode estar acima das opiniões mais ligeiras da mídia desvia-se propositalmente da voz da razão e, para nosso espanto, se engaja em projetos esquisitos que também fomentam a barbárie perpetrada pelo Estado. Do que estou falando? Digo já.

Dia 10 de março de 2010, a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que dá poder de polícia às Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) nas regiões de fronteira. Só isso já seria algo temeroso, mas o problema não é só esse, e sim, o clima vigente no governo e entre as elites brasileiras a respeito do assunto. Há mais gente favorável a esse tipo de prerrogativa recebida pelas Forças Armadas do que se poderia imaginar. E o pior: não são poucos os que acreditam que as Forças Armadas poderiam ampliar ainda mais o território em que atuariam como força policial.

O ‘monopólio da violência’

Uma lei desse tipo é esdrúxula e, no Brasil, torna-se ainda mais danosa na medida em que temos em nossa sociedade a estranhíssima Justiça Militar. Trata-se de um sistema especial, corporativo, de julgamento de militares pelos militares. Então, se os militares são transformados em policiais e se possuem um sistema próprio para avaliá-los quando acusados de infringirem a lei, isso faz com que, no limite, possamos vir a ter no Brasil uma polícia inteiramente militar e completamente fora do controle da sociedade e até mesmo dos governos federal e estaduais.

Ora, mas não é a lei em si que quero comentar. Meu foco é o modo como o governo atual e o Congresso vêm lidando com esse tipo de assunto. Não há voz contrária decisiva, no Palácio do Planalto, nessa questão de dar poder de polícia aos militares. Há uma gritaria no governo Lula por conta de direitos humanos e, em contrapartida, na sociedade há um alvoroço sobre o tema, principalmente a partir de uma instigação do jornalismo conservador contra o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). No entanto, algo de fundamental para os direitos humanos, como essa questão das Forças Armadas como polícia, desliza pelo meio disso tudo incólume. Bem, se assim é, então a capacidade de nossas elites de entenderem o que são direitos humanos está muito aquém do esperado. Em outras palavras: nossas elites nos empurram para pensar fora do quadro dos direitos humanos tanto quanto a mídia em seus programas mais populares. É como se Afanázio Jazadi, tão popular no rádio nos anos 80, tivesse se filiado ao PT e comandasse a mentalidade do Palácio do Planalto. Caso isso fosse retratado numa charge, o melhor seria colocar Lula no colo de Afanázio e os dois uniformizados de ‘milicos’. A imagem não é estranha não! Basta percebermos como o governo deixou as coisas caminharem e como tem incentivado uma mentalidade que, ao mostrar que tem simpatias para com essa lei que dá poder de polícia às Forças Armadas, mostra conhecer pouco do que são os direitos humanos.

FHC e o PSDB colocaram o Exército nos morros do Rio e isso foi uma medida que se mostrou errada em todos os aspectos. Ineficaz contra o crime, prejudicial para o próprio Exército e, enfim, perigosa para a população. O PT, a base governista e o próprio Lula não aprenderam com o exemplo negativo do passado e, agora, reeditam em dose ampliada medidas que vedam o poder da sociedade de controlar o Estado em seu ‘monopólio da violência’. Com um governo do PT assim, que imita o PSDB no seu pior momento, não parece que é só a mídia que colabora para o não entendimento popular dos direitos humanos.

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Filósofo e escritor, São Paulo, SP