Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Governo e direito divino

Em matéria divulgada na revista Época (24/5/2004), a governadora Rosinha Matheus proclamou em alto em bom som que não acredita ‘na evolução das espécies’. Não poderia ter emitido declaração mais infeliz e irresponsável. Como se não bastasse a situação crítica da rede pública de ensino do estado, a governadora agora dá um passo em direção às trevas. Apesar da garantia constitucional do direito à liberdade de expressão religiosa, seu corolário, a tolerância, está ameaçado. O principio da educação pública, universal, democrática e leiga está aos poucos sendo desmontado. Foi assim com a suspensão das eleições para diretores de escola e mais recentemente com a redução para a metade do número de aulas de História e Geografia, disciplinas fundamentais para a universalização do ensino com seu caráter humanista. E agora, com a prática cada vez mais sistemática do ensino religioso nas escolas públicas do estado, eu me pergunto: para que aulas de Biologia e Química? Onde está o direito do aluno ateu, irreligioso, ímpio ou agnóstico?

Desconfio que a governadora, na sua ignorância, nunca tenha lido Darwin e por isso seja porta-voz do grupo populista-religioso que a colocou no poder. Seu obscurantismo deve ser baseado no lugar-comum de que o homem é descendente do macaco (!), sofisma gerador de perseguições e mal-entendidos. Do alto de sua requintada preparação intelectual, ao trocar Darwin por Adão e Eva, sugiro que a governadora Rosinha assuma outras referências teóricas, como a do preceptor do rei absolutista Luis XIV, o cardeal Jacques Bossuet, que defendia o absolutismo de direito divino ao afirmar que ‘não há poder público sem a vontade de Deus’. Os fundamentalistas islâmicos do século 21 sabem muito bem o que é isso. Pobre Rio de Janeiro! O tambor da ressonância cultural e política ‘furou’!

Joaquim A. Ferreira Filho, Rio de Janeiro



A imprensa se omitiu

Como educador, ateu e cidadão vigilante ao que os governos andam propondo por aí, sou forçado a fazer minha análise. Em primeiro lugar, é preciso dizer que a imprensa brasileira mais uma vez se omitiu, ou aplicou pouca energia, ao ‘informar’ a decisão tacanha e medieval tomada pelo primeiro casal carioca. Acredito que o papel dos órgãos que se prestam a divulgar informações ao cidadão comum é municiar as questões e abrir espaço para o debate. O que se viu foram notas de segunda página, dando por encerrado o assunto, ou análise de articulistas sem muito conteúdo, à exceção de Helio Schwartsman na Folha Online. Talvez seja em função disso mesmo: a maioria dos jornalistas não teria conteúdo para abordar o assunto e prefere acompanhar a opinião da maioria, no caso a religiosa, e exclui-se a uma análise mais contundente de uma decisão tão terrível para a educação brasileira.

Quando se propõem assuntos sobre educação e, mais notadamente, no âmbito dessa discussão, é preciso se estabelecer a diferença entre ensino religioso e catecismo. Eu, particularmente, quero muito que meus estudantes conheçam religião, que discutam seus argumentos, que façam análises críticas, que encarem os engodos e falácias mostrados ao longo da formação da humanidade por conta desse tipo de manifestação da cultura. E que se verifiquem os disparates ditos por esse mundo afora quando se compara, indevidamente, ciência e religião. É nesse sentido que quero que o ensino religioso seja dado nas escolas. Sob um enfoque histórico e antropológico.

O que o primeiro casal carioca quer é catecismo, e isso eu não quero e descarto quem assim o propõe. Sendo ateu de primeira ordem, não admito mais a imposição de pensamentos dessa natureza no meio educacional. Concordo plenamente com todos aqueles que se mostram radicalmente contrários à implantação de ensino religioso nas escolas (não interessa se é pública ou privada). Sob o meu ponto de vista, é mais uma forma de dogmatizar os estudantes, de fazer catecismo. Contudo, por paradoxal que seja, escola não é lugar de pontos de vista. Escola é lugar de informação, formação e aprimoramento de conhecimentos. Dessa forma, fundamentando a bagagem intelectual dos educandos, se consegue elaborar vários pontos de vista.

Se fosse diretor de uma dessas escolas, sugeriria a implantação de debates internos no currículo e apresentação das diversas formas de manifestação religiosa existentes, ou que já existiram, e procuraria fazer entender entre os alunos o que de importância isso tem, ou teve, para a humanidade. E o que menos importa numa sala de aula (se quisermos dar uma boa aula) é a opinião do professor, se ele é ateu ou religioso. Ele deve deixar as opiniões se formarem e atuar como um mediador, conduzindo esse ou aquele assunto. O professor de Biologia, o de Química, o de Física e todos os outros devem se reunir e abrir debates em suas aulas sobre a matéria de religião que foi dada naquela semana, antes ou depois de sua aula. Não criticando ou aplaudindo, mas problematizando a coisa. Fazer a pergunta: por que você acredita em um deus? Deixar o educando ir formando sua própria análise relevante ao tema. Até porque a religião é um dos aspectos de interpretação da natureza criados pelo homem, ao lado da filosofia, das artes, da ciência e também do senso comum.

Não dá para tapar os olhos e esconder essa realidade. Guerras estão sendo feitas em nome de religiões e de credos. Se um estudante vem para a sala de aula com essas informações e não encontra um espaço para discutir isso, que formação ele terá? Que conceitos elaborará? Será mais um a repetir as ladainhas das missas, ou os gritos dos cultos evangélicos? Ou os mantras budistas? Em plena era da informação e do conhecimento pleno, quantos dos educadores abrem um espaço em sala de aula para discutir assuntos do dia-a-dia, como relacionamento entre pais e filhos, política, cultura, sexualidade e até religião? Por que essas coisas fazem parte do dia-a-dia das pessoas e em sala de aula não se debatem? Negar a informação do caráter religioso existente na sociedade é ser igual ou pior aos mais radicalmente fundamentalistas religiosos.

Assim como acho uma abominação as escolas de cunho religioso proibirem o ensino completo de Biologia aos seus educandos (isso mesmo, algumas proíbem ensinar a teoria da evolução – tive uma colega que foi demitida de uma escola por causa disso), também penso que os estabelecimentos de ensino de caráter laico devem abrir espaço para todas as manifestações da cultura humana. O espaço da escola deve ser um espaço democrático e não restrito a um grupo, ou a um pensamento.

Dessa maneira, penso que também nos meios de comunicação esse debate deveria ser levado, não da forma como é conduzido por instituições religiosas, como o que fazem os canais de TV das corporações da igreja, mas que se dê espaço a isso em programas de TV de grande audiência, ou em jornais de grande tiragem. No entanto, é possível também que isso leve a perda de clientes, o que não seria interessante para a imprensa empobrecida brasileira.

Alexandre Carlos Aguiar, biólogo, Florianópolis