A guerra civil brasileira não está regida por normas, leis ou acordos para seus combatentes ou vítimas. A desvinculação de princípios é uma exigência do Estado para não amparar os mais débeis, ou qualquer pessoa que possa ser agredida ou morta violentamente. A suprema norma é nenhuma norma, humanitária, legal ou moral. Outra feição dramática dos conflitos violentos como o infligido às populações brasileiras é a percepção de que os enfrentamentos armados estão vinculados a um campo de batalha específico (as favelas). A guerra civil não é conduzida, exclusivamente, pelas mãos do Estado e não se cinge ao local determinado por ele.
Qual é a armação política e étnica (dentro do Estado) que controla e direciona a guerra civil? A condução da guerra aponta para uma face invisível do poder, na qual quem decide prescinde do consentimento para alcançar o seu empenho. Essa política de guerra é feita através de um diálogo oculto com os membros civis e militares envolvidos. É uma guerra suja e subterrânea. Mas ele não está sopesando a atual quadra e está sendo punido pelos movimentos da História, que não é tão passível quanto pretendem os seus gestores.
Politicamente, envolve ou não na guerra o conjunto das suas instituições que regulam a luta pelo poder e o seu exercício, para preservar a legalidade moral de tais instituições. Ele a comanda para além da determinação das instituições constitucionais, com grupos (econômicos, militares, policiais, judiciais) fora do enquadramento legal e formal. Ou, segundo as palavras de Jean Bodin, importa mais ‘a forma de governar que o estado de uma república’.
Processo de controle étnico
O atual discurso sobre a violência é similar ao historicamente utilizado de forma perene na nossa história: o Brasil é um lugar muito perigoso. Este axioma se está esgrimindo para justificar uma nova proteção social paramilitar e parapolicial, mesmo que não exista evidência alguma de que a atual não cumpra sua finalidade. Sua justificativa só é plausível a partir de suposições, sendo uma delas a da etnia dominante acerca da irracionalidade e violência dos outros grupos étnicos brasileiros, notadamente o afro-brasileiro. Apregoa que o reaparelhamento e o rearmamento pesado da polícia são as únicas formas de conter a violência, assegurando a paz.
A guerra civil é um regime de terror e mentira, em que se produz uma elite burocrática e policial à qual são concedidos privilégios econômicos e vantagens profissionais. No outro extremo está a população segregada. Corpos e caixões não são falsificáveis.
Por que a imprevisibilidade determinista do Estado se revela incapaz de fazer previsões suficientemente específicas para terem utilidade prática e útil no combate à violência? Uma explicação pueril é dizer que os componentes da violência na sociedade brasileira são geralmente tão complexos que não são representáveis por modelos tratáveis analiticamente. Apenas uma maneira diferente de o Estado assumir que é bizarro, para ele, combater a sua própria essência etnicista. A relutância em controlar a violência que ele gera ou reproduz, privada e publicamente, é inerente ao seu processo de controle étnico.
Entre destroços
A linguagem do conflito brasileiro está centrada e dirigida pelos códigos étnicos, sociais e econômicos do Estado. A intenção é motivar a cumplicidade do imaginário da população, a partir de estratégias racionais de cooptação, para as suas ações políticas e policiais, a aprovação automática das conseqüências (não importa o custo), endosso social para suas declarações, intenções ou fabulações. Utiliza metáforas racionais e não somente as armas de fogo, táticas retóricas, desprestigiando o inimigo, apresentado-o para o juízo público como demoníaco, irracional, inclemente, selvagem. Isso impede a leitura humanitária do conflito brasileiro, pois busca impingir valores morais que representem ganhos estratégicos para ele. A sua linguagem produz um modo de percepção do mundo ajustado aos seus interesses, isto é, as coisas não são o que parecem.
Por exemplo, pacificação e reconciliação são os opostos do que significam. Para o Estado, pacificação é extermínio e reconciliação é rendição total. Há total omissão do Estado pelo dano da guerra para o futuro do país. É como se ela não dependesse dele, ou de coisa alguma: soberana, não sofre nem comporta restrição ou reserva; não admite condições, obrigações e limites; incondicional, não permite contestação ou contradição; imperiosa, predomina o despotismo, a autoridade arbitrária; despótica, superior a todos os cidadãos, independe de qualquer alusão convencional. A luta visceral do Estado contra as pendências étnicas e econômicas da maioria da população, para ele, é parte integrante do seu progresso histórico. Bloqueia até as mudanças inofensivas dos lineamentos econômicos e sociais exigidos para a sobrevivência da velha ordem, que quer apenas se reciclar e perpetuar.
Mesmo com a palma do triunfo assegurada, causando o mal, corrompendo-se e condenando a sociedade brasileira a viver entre destroços, as perdas são de grandes dimensões dentro do Estado. A principal seqüela provocada é a degenerescência do poder, já teorizada por Platão e Aristóteles. Essa degenerescência, que é cumulativa, faz com que tenha de lançar mão de todas as formas e tipos de violência: o poder se degenera e passa a ser mercadoria, destruindo as vias legais e os processos normais de influência junto dos detentores do poder.
Os últimos diques
Mas a homilia estatal de que não há uma guerra civil no Brasil tem dois aspectos. Primeiro, a atitude das populações segregadas e marginalizadas, que não se identificam com o Estado ou a criminalidade e reclamam a paz quando podem; nas zonas mais conturbadas do conflito, as populações das periferias das metrópoles e dos espaços públicos urbanos, se aderem a um dos bandos – a micro e macrocriminalidade – é mais por temor do que por persuasão política ou ideológica. Mais do que protagonistas dessa confrontação, são suas vítimas, ou são utilizadas como reféns de uma societas criminis que não é delas e nem as representa.
O segundo aspecto se refere ao fato de não haver no Brasil um colapso do Estado, caracterizado por prostração extrema, diminuição súbita de eficiência e de poder econômico. Apesar de estar na ‘defensiva programada’ em algumas regiões, conserva sua legitimidade, eficiência e poder de fogo, que não se pode controlar, que não se pode reduzir ou exprimir em forma de cálculo; que não se pode conhecer totalmente sua importância, seu valor, seu alcance, capaz de uma sucessão de atos ou operações que visam à exclusiva defesa do seu corpo administrativo e econômico. Essa atitude de conservação não impede um revide imediato e violento a qualquer pressão ou ato agressivo.
Entretanto, tanto para o Estado como para os seus principais controladores, contrapor-se à realidade de uma guerra civil generalizada não significa que lhes seja permitido desconhecer que em certas áreas urbanas do país a confrontação já tem, localmente, esse caráter. É presumível que num futuro imediato a polarização da população entre a criminalidade de massas e o conflito étnico rompa inapelavelmente os últimos diques, assumindo definitivamente contornos claros.
A mitologia aniquilada
Não determinar, identificar ou definir as vigas étnicas da guerra civil é atitude que só serve ao irracionalismo do Estado brasileiro. Basta contemplar as cenas humilhantes de nossas cidades para ver que não resta migalha a uma população que se confunde com o pó da terra. Mais vale chamar-lhes, a esses despojos, fragmentos humanos da guerra e da miséria material, uma ruína de seres que, ainda jovem, morre velha. Os caminhos que fluem para o núcleo dirigente da conflagração terminam no Estado e na etnia dominante que o sustentam. Não é uma obra especial do Estado; agrega, igualmente, a sociedade organizada beneficiada pelo modelo social e econômico que a mantém.
O conflito étnico não é inevitável, nem aceitável. Acolher isso é patológico, é a descaracterização e desqualificação de todos os fatores e atores envolvidos. Comecemos pela dualidade: as dimensões étnicas e econômicas da guerra civil e seu passivo humano são ignoradas e negligenciadas; a sociedade indo-européia perdeu, política e sistematicamente, durante a sua história passada e presente, oportunidades significativas para promover a pacificação étnica adiada desde que o primeiro escravo indígena foi martirizado e o primeiro escravo negro desembarcou para ser vendido como mercadoria. São mais do que muitos anos, são séculos. Por ganância, estupidez e tudo o mais que se sabe.
O Estado tecnicista esgotou sua habilidade de controlar a sociedade? Não. Ele ainda mantém a habilidade, a disposição e a competência de multiplicar o vigor de seus ataques policial-militares, e não seleciona mais exatamente o que atacar, nem quais inimigos. O extremismo étnico e sua metamorfose em disputa econômica violenta com etnias que estão secularmente enfrentadas representam uma sociedade que chegou ao fim? A guerra civil está, com cada corpo que colhe, agudizando a terminação do modelo desta sociedade. Essa ordenação étnica, considerada como bem-feita pelos pais da pátria, na verdade, foi uma ideação tosca e anacrônica. A pretensão de arrasamento das etnias dominadas para garantir indefinidamente a sobrevivência dessa sociedade étnica primitiva não é mais razoável. O que está sendo aniquilado, na verdade, é a mitologia da ordenação desse mundo.
Equação política
No Brasil não há uma guerra bipolar, entre dois exércitos. A guerra totalitária atual contra a criminalidade mostra claramente que é decorrente de uma transformação real ocorrida na estrutura e na economia desta sociedade. Clausewitz completou a sua célebre significação de guerra, ‘continuação da política por outros meios’, com a observação de que ‘mais ainda que à arte, assemelha-se ao comércio, que também se apresenta como um conflito de interesses e atividades humanas, e que a própria política devia ser considerada como uma espécie de comércio em grande escala’. Dizia ainda da guerra da primeira metade do século 19 que incluía ‘muito de concorrência comercial levada até às últimas conseqüências e submetida apenas à lei do momento’. Tal era a arte como se cuidava dos grandes interesses da nação.
O país padece de patamares múltiplos de violência, que não regridem, mas avançam para um degrau cada vez mais alto. Em poucas ocasiões a retórica do Estado tem reconhecido que o país está em guerra, e só admite preferencialmente que há uma guerra da macrocriminalidade, notadamente do narcotráfico, contra os civis. A expressão guerra não é muito corriqueira na oratória do governo. O máximo que ele aceita é enfrentamentos armados. Esta falta de visão programada do Estado de não distinguir entre alvos e agressores afeta, principalmente, as vítimas. Isso provoca a deliberada inconsistência do diagnóstico oficial sobre o fratricídio: as prioridades e os esforços para alcançar a paz não estão formulados para beneficiar todas as etnias. Não há um desenho de paz integral. Quando ele propala que o objetivo final é conquistar a paz não se coloca como condição imprescindível e primeira: o silêncio das suas armas. A paz que oferece não é a legítima.
A convivência étnica e pacífica cobiçada pela sociedade brasileira não é um princípio filosófico monolítico, mas uma equação política com muitas faces. A reflexão que temos que fazer é o que leva os diferentes estamentos de uma sociedade democrática a viverem pacificamente. E por que não conseguimos fazer um exame dos arranjos políticos que habilitam as pessoas de grupos nacionais, religiosos ou étnicos diferentes a viverem juntas, com a perseguição do ideal, do espaço e do destino comuns?
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Historiador e pesquisador do atendimento médico ao trauma, autor de A revolução impossível (Best Seller, 1994) Guerra Civil Estado e Trauma (Geração Editorial, 2005), Genômica (Editora Atheneu, 2004)