O 64º Festival de Cannes que terminou no domingo (22/5) poderá ser recordado como um marco na luta pela liberdade de expressão. E o será porque teve a inspiração – ou a boa idéia ou o bom senso, como queiram – de incluir na seleção oficial deste ano dois filmes, rodados “à margem da lei” pelos cineastas iranianos Jafar Panahi e Muhamad Rasoulov.
A imprensa brasileira deu pouco destaque ao assunto, optando por tratar com tintas de escândalo as ofensivas declarações do cineasta dublê de polemista profissional Lars von Trier. E não existe nada mais patético que servir de escada para quem amealha renome pelas polêmicas que cria. O fato é que logo nos primeiros dias do celebrado festival o dinamarquês descuidou-se e, ao apertar o gatilho errado, pode ter ido longe demais: em tom jocoso, se disse nazista e manifestou ter certa simpatia por Adolf Hitler, aquele que protagonizou a mais completa desumanidade de que se tem notícia na história moderna ao ser responsável pelo extermínio de milhões de pessoas, em sua grande maioria de origem judaica, sem deixar de fora portadores de necessidade especiais, ciganos e outros grupos que podiam conspirar para a criação de uma torpe idéia de raça pura.
A direção do Festival de Cannes foi rápida no gatilho certo e logo divulgou comunicado em que anunciava que o diretor tornara-se persona non grata no evento.
País das trevas
Qualquer alento aos anseios mais baixos do ser humano, estes que proclamam a supremacia de uma raça, de um credo ou de uma nação sobre outra, precisam ser detidos ainda no nascedouro. Do contrário, já conhecemos bem a história da união entre a intolerância e a desumanidade: fábricas de cemitérios funcionando em três turnos, onde caem pessoas inocentes e culpadas apenas por ciladas genéticas, por pegadinhas da História quando não do destino.
Se sobrou espaço na imprensa para as diatribes de Von Trier, faltou espaço para preencher a sempre sentida ausência de cineastas talentosos impedidos de mostrar sua arte em Cannes devido a decisões arbitrárias, totalitárias do governo iraniano; certamente o único governo na cena internacional que pode evocar, com bastante assertividade, as agruras do regimes nazistas nos anos 1940.
A ausência do iraniano Jafar Panhi, diretor de obras instigantes como O Balão Branco (1995) e O Círculo (2000), oferecia farto material para uma vigorosa reflexão do papel da imprensa na luta pela liberdade de expressão – que não pode, sob hipótese alguma, ser vista apenas como liberdade de expressão de conveniência mais empresarial que jornalística, como infelizmente parece ser o caso no Brasil.
Nossa imprensa sabe desfocar quando bem lhe interessa desfocar. É-lhe também mais cômodo repercutir e condenar as falas pró-nazismo do cineasta dinamarquês do que pressionar o governo iraniano a recuar da longa noite em que avança rumo à Idade Média. A verdade é que não podemos mudar o passado, aquele tempo histórico que conteve as atrocidades da Segunda Guerra Mundial, mas podemos mudar o presente, este em que se encontra o diretor Jafar Panahi, enfrentando seis anos de prisão em seu país, o Irã, onde o regime, em sua eterna busca pela unanimidade total, conseguida somente mediante o uso da força e da violência, sentiu-se ameaçado por seus filmes, como Fora do Jogo (2006).]
Um pouco de exercício de cidadania mundial faria muito bem à nossa imprensa. E poderia começar por uma pesquisa sobre o que aconteceu na capital iraniana Teerã, naqueles dias que antecederam as festas do Natal de 2010: um tribunal em Teerã sentenciou Jafar Panahi a seis anos de encarceramento e o impediu de exercer sua profissão por exatos 20 anos. Seu crime: “Tentar cometer crimes contra a segurança nacional e promover atividades propagandísticas contra o sistema da Revolução Iraniana”.
Na verdade, o diretor apenas tentou fazer um filme. Mas, graças ao obscurantismo em que se meteu o Irã, o fato é que Panahi se transformou em um símbolo da liberdade de expressão artística e de como ela é ameaçada por regimes totalitários, pela censura e pela violência.
Boas notícias
Imaginemos essa realidade distorcida tomando lugar no Brasil: José Padilha, diretor de Tropa de Elite ou Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus, recebendo de nossa Suprema Corte condenação a seis anos de prisão domiciliar e a 20 anos sem poder dirigir um filme sequer? É claro que as distâncias, as histórias, as similitudes são abissais. Nem o Brasil é o Irã, nem nosso Supremo Tribunal Federal guarda qualquer semelhança com alguma Corte Revolucionária do Regime Islâmico, estabelecida no Irã. Mas é inegável que ao menos em um ponto existe amplo espaço para aproximação: Jafar Pahani, Fernando Meirelles, Muhamad Rasoulov e José Padilha são seres humanos e são brilhantes no exercício da profissão que abraçaram.
Acima de tudo esses quatro diretores sabem escrever histórias com início, meio e fim, usando apenas câmeras, luzes e sombras. É que eles se alimentam de humanidade, se fazem e se refazem com a ingestão de utopias humanas.
As palavras de Jafar Panhi que ecoaram no Festival de Cinema de Berlim 2010 certamente também poderiam ser sentidas ao longo da projeção de 100 filmes nesse recém-terminado evento de Cannes:
“O mundo do cineasta está marcado pela interação entre a realidade e os sonhos. O diretor utiliza a realidade como sua inspiração, a converte em sua imaginação e neste jogo da realidade e da imaginação cria uma película que é uma projeção de suas esperanças e sonhos. A realidade é que nos últimos cinco anos sem veredicto e para os próximos vinte anos com veredicto me têm privado do direito de produzir filmes. Mas sei que com minha imaginação construirei meus sonhos nestes vinte anos.”
No domingo (22), captei ótimas notícias em El País. E não hesitei em repercutir em minha página no Facebook. Dizia o seguinte:
“Jafar Panahi, cineasta iraniano mantido em prisão domiciliar, proibido de filmar pelos próximos 20 anos, conseguiu participar do Festival de Cannes. Rodou um filme dentro de casa, com o título de ‘Isso Não é um Filme’, feito sem argumento e sem atores: só ele mesmo falando. E mandou o material dentro de um bolo para a organização do festival. Parece conto de fadas misturado com suspense… E não esqueçamos: Somos Irã!”
Não seria o caso de a nossa imprensa estar atenta a esses dramas humanos?
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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter