Nota: este texto foi produzido antes que chegasse às bancas a edição nº 421 da revista CartaCapital, cuja capa trata do mesmo assunto. O texto segue porque, na opinião do signatário, suas informações não são redundantes com as da revista, com muito pequenas exceções, e embora as conclusões sejam similares. Necessário destacar que este jornalista, ex-assessor de Celso Daniel e que há anos acompanha o desenrolar das investigações da morte do prefeito, nunca manteve contato com o Raimundo Rodrigues Pereira, autor da matéria da CartaCapital.
A Agência Estado enviou para seus assinantes na terça-feira (21/11). O Estado de S.Paulo publicou a reportagem no quarta-feira (22), furando a Folha, que só viria com a notícia naquela tarde, na página do UOL, e no dia seguinte, no primeiro caderno. E na noite de 22/11, a Rede Globo, via Jornal Nacional, daria a informação: relatório da Polícia Civil conclui que assassinato do prefeito Celso Daniel não foi crime político. Os atropelos entre redações foram além da mera notícia: conforme diria a Globo – mas não os dois jornalões –, o relatório da delegada Elizabete Sato estava pronto desde 26 de setembro.
Estadão e O Globo publicaram a notícia friamente; e a Folha, que perdeu esta verdadeira corrida de tartarugas, não deu o braço a torcer, levantando sérias dúvidas contra a delegada. A mesma Folha cuja repórter Lilian Christofoletti, que assinou a reportagem, tem algumas das melhores articulações com os promotores do Gaeco (Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado) – responsáveis, em última análise, pelo fato de o caso ainda estar sem conclusão, quase cinco anos depois do crime.
Pior: poucas vezes os leitores e telespectadores, ávidos pela verdade, foram tão desinformados como no episódio Celso Daniel. Senão, tente o leitor analisar, por tudo o que leu e ouviu nos últimos anos, o que é que sabe de líquido e certo em relação ao crime.
É a segunda vez que a polícia conclui pelo crime comum, sendo que cada investigação foi tocada por uma instância diferente. Alguns procedimentos simples da rotina policial foram considerados, entre eles o fato de todos os efetivamente acusados pela polícia, presos em momentos diferentes e por policiais de vários estados, não terem entrado em contradições em seus depoimentos.
A mesma parte da imprensa que desacreditou a polícia aceita tacitamente o que dizem outras fontes, principalmente o próprio Gaeco. Por que duas instâncias policiais chegam a uma mesma conclusão e são colocadas em dúvida, e o que diz um único grupo de promotores é divulgado sem o mínimo ceticismo necessário?
Outra fonte com livre curso na imprensa – João Francisco Daniel, irmão mais velho de Celso – também nunca teve sua isenção questionada pelos grandes jornais. Isso, embora seus conflitos políticos com o irmão tenham se tornado públicos e ele tenha sido lobista confesso a favor de uma empresa de ônibus de Santo André.
O resultado é que, em cinco anos de investigações, o caso Celso Daniel hoje parece ter mais personagens do que um romance russo e sua história é mais confusa do que a do seriado Lost.
Fatos mirabolantes divulgados…
Um seqüestro seguido de morte que, por sua vez, provocou um alarde seguido de comoção públicos já seria notícia por si. Mas a sociedade, imprensa inclusive, extrapolou. Não cabe aqui uma retrospectiva de tudo o que já se falou. Não cabe, no caso, literalmente: foi tanta coisa que o espaço é pequeno. Uma pequena lista, escolhida mais ou menos ao acaso, já dá idéia da confusão.
A se fiar no que foi divulgado:
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Celso Daniel foi morto porque tinha um dossiê contra o seu governo e, logo, contra si mesmo;**
a quadrilha que mandou matar Celso Daniel precisou antes organizar o resgate de um preso, de helicóptero, de dentro da prisão;**
um homem que estava numa festa na rua onde ocorreu o seqüestro filmou o crime e descreveu isso a um político do próprio PT;**
as pessoas envolvidas no crime começaram a morrer uma a uma, inclusive o garçom que atendeu Celso e Sérgio no restaurante horas antes do seqüestro;**
um médico legista que entrou na história três anos depois foi assassinado por isso;**
o crime foi passional: Celso era homossexual e Sérgio matou-o por ciúmes. As calças da vítima foram trocadas antes que o corpo fosse desovado;**
o deputado que foi designado pelo PT para acompanhar as investigações foi conivente com uma montagem orquestrada pela polícia para abafar o caso;**
o seqüestro de Celso Daniel tem ligação com um esquema de corrupção que envolve Freud Godoy, cuja atuação culminou na fracassada tentativa de compra de um dossiê contra o PSDB nas eleições de 2006.Estes são apenas alguns dos muitos fatos já vinculados ao crime perpetrado contra Celso Daniel. Parece brincadeira de mau gosto, mas a imprensa realmente divulgou estes fatos. Não apenas isso: as notícias que estas historietas produziram foram usados como munição por partidos diversos nas campanhas eleitorais de 2002, 2004 e 2006.
… e fatos reais desaparecidos
Por outro lado, alguns detalhes realmente relevantes sumiram da imprensa. Um deles é o feirante que a quadrilha criminosa tentara seqüestrar naquela noite. Seu nome era Cleiton Kalil Menezes. Ele foi interrogado pela polícia e confirmou que usava aquele mesmo caminho para voltar para casa, mas que por algum motivo pegou um atalho diferente naquela noite. Na ocasião, apenas o Jornal da Tarde entrevistou-o e deu matéria sobre isso. E ele foi esquecido.
Hoje, pior ainda, alguns jornalistas parecem dispostos a continuar nesta trilha mirabolante. Vide a já mencionada reportagem da Folha de S.Paulo (23/11). O lide:
‘Com dez pedidos de interrogatório ou de quebra de sigilo em aberto, a delegada Elisabete Sato arquivou o inquérito sobre o assassinato do prefeito de Santo André (…) alegando falta de provas conclusivas.’
Mais adiante:
‘Um dos pedidos ignorados (…) partiu de um investigador dela (…) 33 dias antes do arquivamento do inquérito. (…) O policial pede urgência na quebra do sigilo de 34 telefones.’
Pelo que a repórter escreve, a delegada que conduz o inquérito há mais de dez meses teve pressa em encerrá-lo.
Um dado voltou a sumir na reportagem da Folha, apesar do enorme Banco de Dados de que a repórter autora da matéria dispõe. Ela se esqueceu de que dezenas de telefones já foram grampeados no caso. Pode-se argumentar que foram grampos ilegais – foi uma lista de telefones passada para um juiz numa outra investigação, sobre tráfico, e por isso considerada inválida pela própria Justiça. O que não impediu que o material fosse vazado para a imprensa. E mesmo assim a investigação não obteve o menor indício de crime político contra Celso Daniel.
Resultado: um atentado à memória do prefeito
Pouco após o crime, era perfeitamente compreensível que os investigadores procurassem elementos novelescos nele. Celso Daniel era um homem de suficiente envergadura para morrer de maneira aparentemente tão estúpida. Foi o fundador do Partido dos Trabalhadores em Santo André. Era engenheiro com mestrado em Administração, especializado em Economia, professor da PUC de São Paulo e da Fundação Getúlio Vargas. Foi também um dos prefeitos eleitos com a maior margem de votos para uma cidade com mais de 200 mil habitantes. Como coordenador de campanha de Lula em 2002, Celso era cotado para ministro. Cheio de preocupações sociais, foi, por ironia, vítima de um dos maiores problemas sociais do Brasil.
O tempo, entretanto, passou e esperava-se que com ele os fatos ficassem mais claros. Não ficaram. A confusão em torno deles sempre produziu lucros demais. Em conseqüência, conspurcou-se a memória do prefeito e a honra de muitos em torno dele. Que as pessoas responsáveis por isso, entre elas alguns profissionais da imprensa, possam dormir com esse peso na consciência.
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Jornalista, há oito anos trabalha na Prefeitura de Santo André