Que uma considerável parte da imprensa se presta ao papel de porta-voz da elite econômica não se discute. Mas no que se refere ao pretenso debate sobre as cotas para minorias étnico-políticas nas universidades públicas essa postura tem superado, de longe, a todas expectativas.
Podemos classificar o debate de pretenso porque invariavelmente a iniciativa das cotas vem sendo criticada nos editoriais ou em matérias editorializadas. Três exemplos podem ser pinçados de veículos distintos.
Na edição de 11/3, o Jornal Nacional destacou em reportagem os resultados de uma pesquisa conduzida por duas pesquisadoras da Universidade de Brasília, que dava conta da suposta igualdade nos índices percentuais verificáveis quanto às presenças de negros e brancos na sociedade brasileira e nas universidades públicas, de acordo com cada região. Informava a matéria que a pesquisa havia adotado um sistema similar ao empregado pelo IBGE, a autodeclaração. O ‘detalhe’ sobre o fato de a proporção de pardos ser infinitamente menor dentro das universidades, em comparação com os mesmos dados do instituto governamental, foi tratado exatamente assim: como um detalhe.
Ainda que se pudesse ignorar o ‘detalhe’ populacional dos pardos, nem a matéria e nem a pesquisa se deram ao trabalho de confrontar tais números com os cursos freqüentados por esses alunos. Conforme dados apresentados pelas próprias universidades públicas, os cursos mais concorridos, como medicina e direito, são os que apresentam um índice de estudantes não-brancos que chega dramaticamente próximo a zero. Não se considerando aqui os descendentes de orientais.
Outro exemplo vem da edição dominical (13/3) do paulistano Jornal da Tarde. Em seu editorial a publicação classifica a medida de cotas como demagógica. A alternativa proposta, como sempre, é a vaga idéia de melhoria do ensino público em suas esferas básica e intermediária. Por fim, o semanário Veja, em uma edição de janeiro, chegou a empregar o adjetivo ‘stalinista’ para avaliar esta e outras medidas correlatas adotadas pelo Ministério da Educação.
Fosso social
Da maneira como é encaminhado, esse debate só pode ser classificado como falso, porque em primeiro lugar não existe. Geralmente o material produzido por esses veículos ignora as lideranças negras e não-negras, que vêem claramente nessa medida uma ação que não visa resolver um problema histórico, mas mobilizar a sociedade e retirá-la de sua letargia anestésica diante de mazelas igualmente históricas. Ora, se não há interlocução, não há debate.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que os editorialistas e seus entrevistados ‘apostam’ na melhoria do ensino público, não investem em matérias que façam uma radiografia desse mesmo ensino. Não debatem, por exemplo, a calamitosa ‘progressão continuada’ adotada por alguns governos estaduais em suas escolas. Não se debruçam sobre a significativa quantidade de alunos não-brancos que abandonam os bancos escolares por sérios problemas de auto-estima; em resumo, perpetuam-se como defensores de um modelo elitista que tão mal tem feito ao conjunto da sociedade ao longo de décadas.
Parecem repetir a surda e inflexível discussão adotada por seus predecessores do século 19, que viam a abolição da escravatura como uma atitude extremada e tresloucada. Os grandes jornais desse período defendiam medidas genéricas como a Lei dos Sexagenários, ainda que muitos escravos sequer chegassem aos 60 anos. Não interessavam, enfim, o debate e a adoção de medidas concretas que evitassem o surgimento de um fosso social quase intransponível para as gerações futuras.
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Jornalista