Marcelo Freixo explica como a acentuação do neoliberalismo nos anos 1990 agravou a exclusão e criminalização de um segmento específico da sociedade: jovens, negros e favelados. E aponta como a imprensa comprou essa lógica e reforçou a mensagem. ‘Eles é que botavam a lei por aqui, mas sempre achamos que só matavam vagabundos. Meu irmão dizia que só morriam os que deviam, mas ele era um trabalhador e agora está morto.’
O depoimento, um entre muitos presentes no último relatório da Anistia Internacional sobre policiamento de comunidades socialmente excluídas no Brasil, abre o capítulo reservado ao pior massacre da história do Rio: no dia 31 de março de 2005, na Baixada Fluminense, 29 pessoas foram mortas a tiros. Entre eles, Douglas Brasil de Paula, de 14 anos, morto enquanto jogava fliperama em um bar. Elizabeth de Oliveira, que trabalhava no bar do marido e Rafael da Silva Couto, 17 anos, que andava de bicicleta.
‘Eles entram atirando’ é a frase mais repetida aos delegados da Anistia, que dá título ao relatório. Segundo o documento, sucessivos governos permitiram a institucionalização de um policiamento baseado em violações de direitos humanos e corrupção, situação que intensifica a violência e a criminalidade.
O professor de História, ex-coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo contribuiu para a elaboração do relatório. Ele é membro do Centro de Justiça Global, organização que investiga, documenta e denuncia violações aos direitos humanos. Sua entrevista:
***
O que é o Centro de Justiça Global?
Marcelo Freixo – Justiça Global é uma ONG que tem sede no Rio de Janeiro, mas trabalha em todo território nacional documentando casos de violações de direitos humanos, no aspecto mais amplo possível. Trabalha com vítimas de barragens, com a questão dos quilombolas, com a violência contra os povos indígenas, com a questão do trabalho escravo, da execução sumária, violência policial, sistema prisional. Na verdade, a gente acompanha casos específicos de violações.
No caso dos grandes centros urbanos do sudeste, no Rio mais especificamente, a questão-chave é a violência urbana. Como é a atuação de vocês?
M.F. – O Rio de Janeiro tem uma complexidade grande. E o escritório da gente é no Rio. Então, a demanda chaga com uma facilidade maior. Bate à porta, literalmente. E no Rio, em inúmeros momentos no decorrer do século XX, a principal queixa popular é a violência. Nunca deixou de ser. Agora, a violência se tornou prioridade quando começa a atingir setores que não são os setores pobres. Fundamentalmente a partir da década de 80, com o crescimento do tráfico, com a entrada da cocaína e com o crescimento do seqüestro e de outros crimes, de outro perfil de criminalidade, que começa a atingir os setores intermediários e altos da sociedade brasileira, aí a violência começou a se tornar tema de política, não exclusivamente de polícia. Mas não é que seja um problema recente. Todas as pesquisas mostram um outro lado.
Segmentos hegemônicos pressionam por políticas que vão contra os excluídos, numa forma de criminalização da pobreza?
M.F. – Exatamente. O relatório da Justiça Global que fizemos no final de 2004 sobre política de insegurança pública no Rio de Janeiro e violência policial, virou uma peça de denúncia na OEA, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O governo brasileiro e do Rio de Janeiro foram convocados à OEA para dar satisfações. A gente trabalha com o conceito da criminalização da pobreza: o quanto essa política de segurança é elitista, conservadora, excludente. Não é uma política inclusiva, que é pensada através de ações policiais e não sociais. A favela de Acari não tem posto de saúde ou creche. Mas tem uma presença policial permanente. Essa forma de operar, não garantir a segurança à população pobre, mas entender que a população pobre é uma ameaça à concepção de segurança, é o que a gente chama de criminalização da pobreza.
Por exemplo?
M.F. – O mandado de busca genérico. Uma prática atual muito forte no Rio de Janeiro. O Judiciário permite um mandado de busca para toda uma comunidade. Todas as casas, naquela região podem ser revistadas. Mecanismos exclusivamente para tratar da favela. Copiamos um trecho de um desses mandados de busca genéricos de 2002 em que se refere à favela como lixo genético. É uma concepção em que a pobreza está criminalizada. A desigualdade tem uma relação direta com o aumento da criminalidade, mas a pobreza, não. Quem que conhece minimamente favela sabe que o percentual da juventude envolvida com o crime não chega a 1%. As pessoas não imaginam isso.
Existem outros instrumentos de criminalização da pobreza, como os auto de resistência. Isso se estabelece fundamentalmente na década de 90 e não é à toa. Exatamente no momento em que se consolida no Brasil um modelo neoliberal onde uma parcela da sociedade é inempregável, não serve, é sub-cidadão.
À medida que diminui o Estado de bem estar social aumenta o investimento no sistema prisional e em políticas de segurança repressivas.
M.F. – Para todo Estado Mínimo – marco da década de 90 – é necessário um Estado Máximo de repressão. Isso em escala mundial. Nos Estados Unidos, por exemplo, há dois milhões de pessoas presas. O Brasil teve, de 1995 a 2003, um crescimento de população carcerária de 93%, a média mundial ficou entre 20% e 30%. Não é à toa. O perfil da população carcerária Brasileira é exatamente o mesmo perfil das pessoas que hoje são vítimas dos autos de resistência da ação policial: negros, pobres, jovens, homens, moradores de periferia, de favela, de baixa escolaridade. Ou seja, é o processo de exclusão se consolidando ou na prisão ou na morte.
Você vê intencionalidade nisso?
M.F. – Só consigo entender essas lógicas através da luta de classes. Mas eu acho que é a luta de classes se aprimorando, a luta de classes tendo como elemento não só a exclusão da relação capital x trabalho, mas a exclusão da sociedade num plano absolutamente amplo onde se permitem, inclusive, as violações da integridade moral física e a própria morte.
A mídia entrou nesse esquema deste lado?
M.F. – A mídia hoje tem um poder impressionante em pautar as ações do governo. Para obter uma vitória contra o governo, tem-se que utilizar a mídia como instrumento. Eu comecei a preparar um relatório sobre a Polinter para que virasse denúncia internacional. As denúncias eram escabrosas. Procurei pessoas da mídia que disseram que corrupção e tortura não são novidades. E este é um ponto: o quanto a idéia da mídia não é a da responsabilidade sobre o que está acontecendo, mas da possibilidade de vender ou não. É uma relação absolutamente mercantil e a violência que é um tema central, que é o maior problema social do Rio de Janeiro, é uma mercadoria. Não é a lógica da responsabilidade social. É a lógica mercantil. E isso é muito grave.
Como conseguiu dar visibilidade ao fato?
M.F. – Já sabia, mas não tinha provas, que os presos eram classificados e que ganhavam as facções na Polinter. Tem uma ótima matéria do Werneck (Antônio Werneck e Gustavo Goulart, do O Globo, são autores da reportagem ‘Mortos de Benfica foram presos por pequenos delitos’, em junho de 2004), que mostra que todo mundo estava preso ali por coisa mínima, roubo de tênis, mochila. E aquelas pessoas ganharam facção na Polinter e morreram por causa da escolha de facção. Escolha que é imposição.
Perguntei sobre o carimbo (que era usado para que os presos assumissem determinada facção). Pedi uma cópia do modelo. Uma pessoa carimbou na folha e me deu. Consegui uma prova. A gente preparou a denuncia na OEA. Pediu uma medida cautelar, coisa rara de alguém ganhar contra o Estado. Preparei toda documentação e entreguei para o governo Brasileiro e do Rio de Janeiro. Nenhuma providência foi tomada. Aí eu trabalhei na mídia e foi primeira página do Globo. Domingo. A matéria ficou boa, botaram o carimbo, trechos da denúncia. Resultado: o diretor da Polinter foi demitido no domingo e houve um plano de desativação da Polinter. Foi por causa da denuncia na OEA ou por causa da matéria no Globo? Isso é impressionante. Não adianta fechar os olhos e fingir que a mídia não tem o espaço que tem.
Foi uma vitória…
M.F. – Agora, ao mesmo tempo, no mesmo jornal, tem uma outra matéria: vizinhos dos morros não dormem em Ipanema, Leblon, Copacabana. É impressionante: entrevista os moradores da Rua Barão da Torre, gente que mora ao redor do Pavão Pavãozinho e em nenhum momento cita os moradores da favela. As pessoas ficaram com medo de passear com seu cachorro de manhã. Nessa ocasião, morreram três pessoas no Pavão Pavãozinho. O drama de quem vive dentro da favela não importa.
Qual o grau dessa invisibilidade?
Dos 17 mil e 900 jovens vítimas de homicídios em 2002, 11 mil e 300 eram negros. Quem é a real vítima da violência? a maior parcela são jovens pobres, negros moradores de favela. O morador de favela é vítima da ação do tráfico, que é uma ação violenta, impositiva, truculenta e, ao mesmo tempo, vítima da exclusão social, da ausência do Estado, e vítima da violência do Estado que só entra nesses espaços com a polícia. Que não vê naquelas pessoas, pessoas dotadas de direitos.
O Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro tem 100% das suas operações dentro das favelas. O que já caracteriza criminalização da pobreza porque a elite da Polícia Militar é para operar só na favela. A música que o Bope canta em seus exercícios físicos – e isso foi denunciado nos jornais (em 2003) – diz: ‘O interrogatório é muito fácil de fazer; pega o favelado e dá porrada até doer. O interrogatório é muito fácil de acabar; pega o favelado e dá porrada até matar. Bandido favelado não se varre com vassoura; se varre com granada, com fuzil, metralhadora’.
O que está por traz disso?
M.F. – Na verdade, bandido é todo setor que sobrou do mercado, é todo setor pobre que geograficamente é identificado: é favelado. E com isso vem uma questão de etnia, econômica, social, ideológica, que vem acompanhando esse processo de criminalização da pobreza. É sobre isso que é construída a política de segurança pública no Rio de Janeiro e, de alguma maneira, a imprensa, ainda calcada na manutenção da ordem. Esse é o grande debate que se tem que fazer: que ordem está sendo mantida?
Você tem acesso aos cabeças da imprensa? Eles já ouviram o que você acabou de dizer?
M.F. – Tem uma barreira ideológica. A questão da luta de classes hoje passa fundamentalmente pelo combate à exclusão. No sentido mais amplo. Não é mais só a relação capital x trabalho. Não é mais só uma relação que se coloca com o capital. É uma relação que se coloca com a vida de uma forma mais ampla. A favela hoje passa por um processo de exclusão que não é a questão do desemprego. É uma questão de ética, de conduta, de postura. O processo de exclusão é muito profundo e hoje ameaça a vida. O único setor demográfico que apresenta queda é na juventude. Porque os jovens estão morrendo e é fundamentalmente a juventude pobre. Há uma questão de classe e a gente precisa abrir o olho. E criar alternativas. Eu não me iludo quanto à possibilidade de convencer os grandes veículos de comunicação de terem compromisso. Acho que tenho que saber utilizá-los. Saber preparar uma denúncia ou outra bem feita. Agora, não me iludo de que não serão instrumentos dessa mudança. A gente tem que criar meios alternativos.
Qual o papel da Rede de Jornalistas Populares, a Renajorp, criada no ano passado?
M.F. – Primeiro, o papel da quebra da invisibilidade. De dialogar com os diferentes e com os indiferentes, e de estar fazendo atividades na favela, campanhas, levar os vídeos às favelas, ampliar este setor das redes. Os jornais de sindicatos precisam ter uma responsabilidade social mais ampla e tentar discutir as questões da categoria dentro de problemas que seriam mais profundos no Rio de Janeiro. Todo jornal de sindicato poderia ter uma página ou matérias permanentes debatendo a questão da segurança pública e da violência, porque esta é uma questão central. Não é preciso esperar que algum de nós seja vítima para pautar o assunto no nosso sindicato, porque está batendo na porta de todo mundo. Eu acho que o papel da Rede de Jornalistas é fundamental.
Como lidar com a grande imprensa?
M.F. – Eu trabalho com a grande imprensa o tempo inteiro. Tem bons jornalistas comprometidos dentro de todos os jornais. Não tenho dúvida nenhuma disso. Lido com jornalistas que têm compromisso. Conseguimos produzir boas matérias. Já tivemos grandes efeitos e conquistas. Agora, não posso ter esses veículos como meios de transformação porque eles não são para isso.