Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Inclusão, cidadania e abusos conceituais

Muitos conceitos costumam habitar temporariamente a mentalidade da sociedade e das pessoas. Assim foi que a sustentabilidade nos últimos tempos passou a significar menos uma postura ético-ambiental e mais um termo do arcabouço aparentemente infindável do discurso político. Participação popular, democracia participativa, são termos muito empregados por pessoas que são profissionais em representar os demais. Controle público já se pode ouvir da voz eletrônica de um 0800 de uma repartição pública. Sem falar no paradigma que, também por sua origem grega, impressiona, mesmo quando não há nada perto de um paradigma em questão.

Com a inclusão, não haveria de ser diferente. A inclusão é uma palavra mágica que deveria recolocar o sujeito imediatamente numa condição de vida ideal, imaginada normalmente por um terceiro. Além disso, tem a vantagem de casar muito bem com outro termo: a transversalidade. Então, temos que a inclusão é transversal, ou seja, é aplicável a qualquer segmento social, grupo humano ou temática. A crença de que a inclusão fica nisso é o que torna o conceito suscetível a mal-entendidos muitas vezes criados intencionalmente. Mas a inclusão é a condição da ausência, mais que da presença. Seu foco não é o sujeito e suas particularidades, mas o ethos e suas complexidades. Muito da dificuldade em desfazer a crença comum de que a luta pela inclusão seja meramente uma tentativa de reconciliação social se deve ao fato de que também muitas vezes se faz uma relação apressada com outro conceito que também ganha eco em proporções e direções geométricas: a reparação.

Mais respeito à diversidade

A reparação é possível e cabível quando aqueles a serem reparados têm em consenso que ela por si só é condição sine qua non de resolução de um conflito. É como um passo sem o qual não é possível avançar. A noção de reparação não tem muita semelhança com a inclusão, pois aqui não há uma espécie de dívida histórica. A inclusão é uma necessária interlocução nas democracias contemporâneas porque se trata da ocupação de um vazio histórico, no qual a invisibilidade é um tipo de violência pactuada por toda a sociedade. A inclusão não existe sem o seu oposto: a exclusão. E se em todos os processos se coloca a perspectiva de incluir sujeitos, é porque estes mesmos sujeitos se encontram de uma forma ou de outra alijados de seus direitos fundamentais e de qualquer oportunidade social.

Quando se fala em incluir um aluno numa escola, não se fala somente em seu direito a pertencer, a ocupar um espaço social, mas, sobretudo, em destituir a escola de sua cultura excludente, onde cabem uns e não cabem outros. Quando se fala em incluir uma pessoa no mercado de trabalho, não se está falando apenas do seu direito ao acesso ao autosustento, mas na transformação do mercado num espelho de toda a sociedade, e não apenas dos privilegiados que criam o seu ordenamento. Quando se fala em inclusão, não se fala apenas por pregação da diversidade ou pela afirmação da igualdade de direitos e oportunidades, mas se admite que o Estado de direito e a organização social competem e organizam uma sociedade essencialmente desigual e heterogênea. O que se busca com a inclusão é a construção de uma sociedade mais igual, que respeite mais as diferenças entre os grupos e que providencie direitos comuns aos cidadãos e seu acesso a estes direitos.

Mais dignidade e menos discurso

Muitas vezes será impossível avançar nesse sentido sem que se desarticule o discurso da exclusividade, do preferencial, da proteção e até mesmo da reparação. Talvez aqui estejamos falando de um paradigma, de uma situação formalmente assumida pela sociedade. Bem como pensava Thomas Khun, não há mesmo meio de suplantar um modelo de organização sem que suas bases sejam desestruturadas, desconstituídas.

A sociedade brasileira ganhará muito se conceitos como sustentabilidade, participação popular, controle público, inclusão e Estado de direito deixarem de ser ameaçados por discursos vazios e eventuais. Se forem incoporados como valores ‘da’ sociedade, e não conceitos com finalidade específica. Estes são termos que precisam ser ‘incluídos’ em definitivo em nossa sociedade para que possamos começar a construir mais realidades e menos conceitos. Mais dignidade para a vida de todos e menos discurso. Para que possamos construir de uma vez um novo tempo a partir de agora.

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Coordenador da Agência para Promoção da Inclusão (Inclusive), autor de Morphopolis