Muita coisa não fecha nos cálculos posteriores ao massacre da PM contra os professores ocorrido na Assembleia Legislativa do Ceará na última semana de outubro. Aos fervorosos defensores do “patrimônio público” cabe lembrar que não se registrou perda ou sumiço de nenhum bem material. E soa a nonsense a nota da AL publicada em jornais locais, alegando necessidade de “defesa da integridade física” dos parlamentares, quando nenhum deles chegou a ficar em risco. Se algo gerou violência foi a antecipação dos dirigentes ao requerer proteção policial antes de ocorrer a “ameaça” real.
Quanto aos relatos jornalísticos, foram unilaterais na narrativa, a começar por desconsiderarem que, na primeira fila de contato entre professores e policiais, a desvantagem física era evidente para os primeiros. Os batalhões de choque não são famosos pela diplomacia ou delicadeza. Faltaram, portanto, narrativas jornalísticas de um dos lados da trincheira, falha que as muitas imagens do evento trataram de corrigir. Mas faltou, sobretudo investigação sobre ações correlatas, como o grau de insatisfação de outras categorias do funcionalismo público, pois o que reivindicam os professores – manter um plano de carreiras decente e uniforme – também é um problema para os policiais. Terá havido, por exemplo, casos de policiais que se recusaram a ir ao confronto naquele dia, em solidariedade às manifestações? Perguntas inquietantes não foram feitas aos comandos e tampouco aos políticos que endossaram a ação.
O descomprometimento do Estado
Também não se considera como “patrimônio público” o corpo oprimido de professoras e professores, o que remete a reconsiderar a questão dos direitos humanos. Terá razão Delleuze, em seu Abecedário? Afirma ele: “A respeito dos direitos humanos, tenho vontade de dizer um monte de coisas feias (…). É conversa para intelectuais odiosos, intelectuais sem ideia. Notem que essas Declarações dos Direitos Humanos não são feitas pelas pessoas diretamente envolvidas (…). Todas as abominações que o homem sofreu são casos, e não desmentidos de direitos abstratos. São casos abomináveis.” Afinal, o resultado final, agressão aos manifestantes juntos aos quais todos devíamos estar (o magistério público de nível superior tem salários congelados há cerca de seis anos e faltam professores), foi uma barbaridade a manchar os currículos dos gestores públicos que a legitimaram. Muitos destes perfilavam-se ao lado dos grevistas até muito recentemente, em busca de seus votos, e não hesitavam em casos de “violação” de patrimônio público. Os hábitos mudam aos monges?
De resto, o confronto foi parar na web e na mídia internacional. O que leva, certamente, a questionamentos sobre um “país rico” onde professores são agredidos com violência por reivindicarem um salário mínimo que, hoje, seria inferior a 800 dólares. O valor é ridículo para quem tem o compromisso e a responsabilidade de cuidar das crianças e adolescentes pobres, claro, pois as classes média e alta mantêm seus filhos na rede privada, pagando por um ensino muitas vezes de qualidade duvidosa (o mesmo ocorre em relação à saúde) enquanto reclama de impostos e do “radicalismo” dos servidores públicos.
Uma das grandes contradições no pós-ditadura militar é a degradação do ensino público dos níveis básico, fundamental e médio. A desvalorização da carreira do magistério é resultado desse descomprometimento do Estado em relação a uma obrigação sua, a manutenção de um serviço de qualidade, ofertado por pessoas qualificadas, salvaguardadas e, sobretudo, felizes, e não uns pobres coitados mutilados pela insalubridade e pela precariedade profissional. Discursos elaborados a partir desta perspectiva podem levar à reflexão e correção dessas prolongadas distorções.
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[Túlio Muniz, é jornalista profissional, historiador, doutor pela Universidade de Coimbra, Portugal, e professor (temporário) da Universidade Federal do Ceará]