Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Invasão de privacidade

Assessor Especial da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, junto ao seu assessor Bruno Gaspar, foi flagrado por um cinegrafista da TV Globo fazendo gestos obscenos ao comemorar a descoberta do reverso ‘pinado’ pela queda do Airbus da TAM cuja culpa era jogada no colo do governo. Consideraram certas pessoas que seria uma invasão de privacidade da vida pública dos servidores trabalhando.

Durante o julgamento das denúncias do mensalão, Ricardo Lewandowski e a ministra Cármen Lúcia tiveram correspondências eletrônicas em local público registradas e divulgadas pelo jornal O Globo. Flagrado uma segunda vez falando ao telefone pela Folha, o ministro Ricardo Lewandowski estava, em público, falando no celular.

Aqui no OI, o jornalista Luiz Weis lembra, no artigo ‘Jornal entrega tucano que pisou no e-tomate’, o deputado federal Paulo Renato (PSDB-SP), flagrado e denunciado pela Folha por conter uma consulta privada a terceiros não apagada no espaço do texto enviado.

Mais remotamente, houve o vídeo do Waldomiro Dinis gravado pelo Carlinhos Cachoeira, e do servidor dos Correios Maurício Marinho, chefe do departamento de contratação da empresa, aceitando suborno que desencadeou todo o desmascaramento do episódio do mensalão. Todos alegaram os princípios da inviolabilidade para condenar a divulgação e desqualificar como prova.

‘Ingerências arbitrárias ou abusivas’

A Constituição garante a inviolabilidade da vida e garante a sua proteção. ‘Art. 5 , X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;’

O art. 5º, XII, da Constituição Federal, positiva a inviolabilidade do ‘sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal’.

O texto constitucional, de fato, acha-se afinado com as declarações internacionais de direito que buscam assegurar a privacidade do cidadão:

‘Ninguém será sujeito a interferência em sua vida privada, na de sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques (Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948)’;

‘Ninguém será objeto de imiscuições arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, da sua família, no seu domicílio ou da sua correspondência nem de atentados ilegais à sua honra e da sua reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais imiscuições ou de tais atentados (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966, artigo 17, §§ 1º e 2º)’;

‘Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral (artigo 5º); Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação (artigo 11 da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, realizada em São José da Costa Rica em 22 de novembro de 1969).’

A invenção da caixa-preta

Criminosos (atos dolosos) têm garantida a faculdade de não falarem a verdade e de não serem obrigados a fazer prova contra si. O princípio Nemo tenetur se detegere é que sinaliza que ninguém é obrigado a acusar a si próprio, ou ‘Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal’. Sendo o silêncio um direito constitucional de qualquer investigado, inclusive do preso – art. 5º, LXIII, da Constituição Federal. O ônus da prova é integralmente do Estado, não podendo tal ser colhida ‘da própria boca do acusado’.

O privilégio contra a auto-incriminação – nemo tenetur se detegere –, erigido em garantia fundamental pela Constituição – além da inconstitucionalidade superveniente da parte final do artigo 186 Código de Processo Penal – importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência – e da sua documentação formal – faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em ‘conversa informal’ gravada, clandestinamente ou não. (STF, HC 80949 / RJ. Julgamento: 30/10/2001. Órgão Julgador: Primeira Turma)

O que hoje se chama de caixa-preta em aeronáutica, isto é, o CVR (abreviatura de Cockpit Voice Recorder), que grava o que se fala na cabine dos pilotos e da torre e o FDR, que grava os dados técnicos, foram inventados quase uma década depois da Segunda Guerra por um australiano, o dr. David Warren, um químico.

Quebra de confiança

No início da década de 1950, uma série de desastres aéreos com o De Havilland (DH106 Comet), primeiro jato comercial do mundo, levou aquele cientista, especializado em combustíveis para avião, a idealizar um aparelho que registrasse o que se passava na cabine do piloto e as conversas no rádio. Seu primeiro protótipo, chamado de Unidade de Memória de Vôo, veio a público em 1957.

A princípio, as autoridades aéreas australianas não consideraram a invenção de grande utilidade e houve uma resistência ao seu uso por parte dos pilotos, que se sentiam sob vigilância e viam a possibilidade de ter sua memória manchada pelas sombras da imperícia ou mesmo de pânico ante a visão da morte imediata.

Foram os ingleses e os norte-americanos que acreditaram no invento do dr. Warren e o introduziram em seus aviões a partir de 1958. Hoje, a caixa-preta é um instrumento de uso obrigatório e as autoridades aeronáuticas são unânimes quanto à sua utilidade.

Traçando um paralelo com a medicina, não é função do médico denunciar aborteiros ou traficantes de droga. Sua função é atender o viciado ou a mulher lesada pelo aborto provocado. Se não respeitasse o direito à privacidade dessas pessoas, certamente não procurariam ajuda médica e teriam lesões piores ou a vida perdida. Entendemos que o mal seria pior se uma atitude policialesca fosse adotada. Haveria uma quebra de confiança em falar livremente a verdade.

Cumprimento da lei do silêncio

Mas não deixa e ser uma invasão de privacidade dos pilotos a divulgação das falas nos seus últimos 30 minutos até o acidente (tempo de duração da gravação). O que eles temiam no início se torna hoje realidade. O que era uma contribuição para a segurança aérea para ser ouvida de forma privada por técnicos capacitados na procura de corrigir erros futuros passou a ser prova criminal para ser usado contra controladores e pilotos pelo poder público. Na hora dos profissionais do vôo, os direitos à privacidade e a garantia de não fazer provas contra si, até porque não são malfeitores, deixam de valer e passam a ser provas policiais para serem interpretadas por pessoas sem vivência em aeronáutica. Assim, passam as pessoas envolvidas na investigação aeronáutica a se comportar, legitimamente, como acusados a priori de crimes, tomando as medidas de ocultação, dissimulação, omissão de informação e tudo que é atitude que um criminoso comum faz para não ser pego, para se proteger e que a constituição lhe garante este direito. Muito mais justo que uma pessoa comum o faça.

E a mídia, como não poderia deixar de ser, usa e abusa das gravações para condenar, especular, linchar reputações e vidas. Pilotos e controladores não possuem os direitos que a sociedade dá ao mais perverso serial killer. Não foi para serem expostos ao escárnio público que gravaram as suas vozes em mecanismos praticamente indestrutíveis. Se pilotos e controladores, através das suas entidades de classe, passarem a exigir o cumprimento constitucional da lei do silêncio, a perda para a luta pela segurança aérea, que não tem fim, seria enorme.

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Médico, Porto Alegre, RS