Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Isso é bom ou mau?

No dia 30 de abril, pouco antes do feriado, o Supremo Tribunal Federal revogou toda a Lei de Imprensa, a 5.250, de 09/02/1967. O pedido de revogação foi feito por apenas uma pessoa, o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), e subscrito pelo partido. Meu susto com isso é perceber que à revelia da sociedade e do legislativo, uma pessoa e o judiciário podem mudar a história do país e jogarem todo o setor da mídia em um vácuo de legislação onde realmente não se sabe mais o que pode e o que não pode.

A Lei de Imprensa não era uma leizinha qualquer. Tinha 77 artigos e pendurado nela um monte de regulamentações e legislações em vigor. Pelo entendimento geral, quando uma lei é revogada, todas as outras que dependem dela, ou todas as regulamentações sobre ela, caem também e deixam de vigorar. Essa deveria estar sendo a discussão do momento no país, mas quem vai discutir? A grande mídia? A grande interessada em não ser legislada? É óbvio que não. Estamos ‘não vendo’ isso nos jornais, revistas, TVs e blogs.

O que esta revogação significa para minorias constantemente agredidas? Em primeiro lugar, há quase dois anos, quando o ministro Ayres Brito (STF) decidiu de forma ‘monocrática’ – aprendi que esta palavra existia naquele momento –, ou seja, decidiu sozinho, revogar 22 artigos dos 77, caíram automaticamente as regulamentações e as conseqüências destes artigos. O que mais nos importa é a queda dos artigos que definiam que qualquer pessoa que se sentisse ofendida podia pedir o direito de resposta sobre calúnia, difamação ou injúria sofrida por terceiros. Para ficar bem claro: agressões racistas contra os judeus eram respondidas com base nisto. Se o direito de resposta não fosse concedido, ir-se-ia à justiça e ele seria dado após um processo com desgaste para o lado perdedor, ou seja, o da grande mídia, com multa etc. Logo, um acordo rápido e uma publicação imediata eram baratos.

Islã não era ‘parte ofendida’

Desde a decisão monocrática do ministro que votou a favor de S. E. Castan, mentiroso sobre o Holocausto, em seu recurso ao STF (perdeu, sua condenação foi mantida), calúnia e difamação passaram somente à esfera penal. Isso significa que apenas o ofendido pode reclamar. Aliás, reclamar não: precisa registrar um boletim de ocorrência e passar por todos os trâmites legais, arrolamento de testemunhas, julgamento, instâncias diversas até uma decisão final, onde uma calúnia, uma mentira lançada no papel ou no vídeo, já terá sido esquecida, o estrago feito e a resposta sem efeito. Antes, até dois anos atrás, o Direito de Resposta era regulamentado de forma sumária para um prazo de 24 horas após a publicação ou na próxima edição.

De forma bem clara: entramos num sistema ‘norte-americano’, onde a ofensa e ameaça generalizada é protegida pela ‘liberdade de expressão’ e a ofensa e ameaça à pessoa, entidade ou empresa especificada é crime. Uma organização não pode entrar na justiça por ofensa generalizada e coletiva. Há poucas semanas, uma decisão destas foi tomada por um juiz no Rio de Janeiro. Preciso concordar. Ele agiu corretamente. A lei está errada. Um jornalista muçulmano entrou com um pedido de proibição da música de carnaval Cabeleira do Zezé, alegando ser ofensiva ao Islã e ao profeta Maomé.

Na sentença o juiz concordou, mas indeferiu, declarando que o jornalista nem era o profeta em questão nem o Islã, portanto, era ‘parte ofendida’: não podia entrar com a ação. Apóio esse colega jornalista. Se a música não era ofensiva 40 anos atrás, quando foi composta, hoje, à luz da realidade, é. Isso é o mesmo que pode acontecer com as ações coletivas em defesa de minorias.

Só os mortos teriam direito de resposta

O racismo contra judeus e o anti-semitismo, as agressões contra as religiões de matriz africana são quase sempre generalizadas, enquanto o racismo contra negros é quase sempre individualizado. Neste momento, isto faz toda a diferença. Não há mais lei que impeça o discurso escrito ou transmitido pela mídia com conteúdo racista. Digo isso porque nos restou apenas a Lei Paim. Ela nunca protegeu as minorias, como o artigo 5 da Constituição também não protege, e nenhum racista jamais foi punido por intermédio dela. Mas ela é clara e deveria bastar. Precisa ser divulgada e utilizada!

A Lei Federal 9.459, de 13 de maio de 1997, diz claramente no artigo primeiro: ‘Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação e de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional’; no vigésimo: ‘Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa’; § 1º ‘Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo’; e § 2º ‘Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação ou publicação de qualquer natureza. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa’.

Mas ninguém pagou pelos constantes e reiterados crimes definidos por estes artigos. Um dos motivos é porque não há uma definição clara no ambiente legal e jurídico do que é ‘discriminação’, ‘preconceito’, ‘distribuir’, ‘veicular’ e ‘divulgação’.

Recebem-se muitas reclamações de publicações com a face de Hitler na capa. Viu o texto da lei? Onde enquadrar? Na minha visão pessoal, o rosto de Hitler é o maior símbolo do nazismo, mas na visão do judiciário é apenas símbolo gráfico – ou uma foto pode ser símbolo? Isso nunca foi discutido. Ora, revisão do Holocausto é nazismo? Revisão é um processo histórico legítimo, rever com base em nova documentação e novas provas. Mentir sobre o Holocausto é nazismo? Mentir é dizer que não aconteceu, desconsiderar provas e documentos ou dizer que não são válidos. Revisar e mentir são coisas diferentes. O revisionismo é um processo normal do estudo da história. O revisionismo do Holocausto é apenas um amontoado de mentiras, portanto calúnias, portanto não mais passíveis de processo coletivo ou por terceiros. Apenas os mortos poderiam reclamar a prova e o direito de responder e afirmar que realmente morreram…

Ninguém mais é responsável

Só que isto é uma pequena parte do que foi revogado, apenas uma interpretação do que nos vai atingir de forma pesada, caso não se use a 9.459 de forma incisiva. Logo no artigo 1º da ex-Lei de Imprensa, havia a garantia da liberdade de busca e veiculação da informação. Isso caiu. Então não somos mais livres? Não era tolerada propaganda de guerra, subversão ou preconceito. Isso caiu. Então se pode fazer? É livre a publicação desde que não sejam clandestinos. Agora podem ser… A exploração dos serviços de radiodifusão (rádio e TV) dependia de permissão ou concessão na forma da lei. Será que a lei que regulamenta não caiu automaticamente e esse trauma da concessão deixou de existir? Isso colocaria na ‘não ilegalidade’ as rádios piratas? Ou esta lei favorável ao Estado será mantida e outras favoráveis ao cidadão não serão?

Era proibida a propriedade de empresas jornalísticas por estrangeiros. Isso caiu. Havia a definição do que é empresa jornalística. Não há mais. No exercício da liberdade de expressão, não era permitido o anonimato. Agora é. Era assegurado o sigilo das fontes. Como o artigo foi para o lixo junto com a lei, então não é mais… Isso aqui foi só até o artigo 7, eram 77.

O artigo 16, um dos mais importantes, proibia a divulgação de fatos falsos, ou verdadeiros truncados ou deturpados que perturbem a ordem social, o sistema financeiro, imobiliário ou mercado de títulos e valores. Sem este artigo, não há freio! Antes era crime; agora, pode! Os artigos 37, 38 e 39 definiam quem, dentro da empresa jornalística era responsável penal – em seqüência – pelos crimes cometidos. Agora, ninguém mais é responsável. O artigo 58 exigia que as empresas jornalísticas mantivessem seus arquivos de material veiculado por 60 dias. Agora não precisam manter. Algo que foi ao ar, pode ser suprimido das fitas e servidores da empresa sem a menor consideração legal.

Atualização da regulamentação ficará ausente

O artigo 61 dizia que estão sujeitos a apreensão legal os impressos que contiverem preconceitos de raça e cor. Agora não há mais dispositivo sumário para a apreensão exceto na Lei Paim. Isso foi muito utilizado no caso de Mein Kampf, de Protocolos dos Sábios de Sião e de livros de revisionismo do Holocausto. Estes dispositivos eram especificamente sumários devendo haver decisão judicial em no máximo 24 horas. Geralmente era muito veloz e a polícia já chegava ao local com a ordem judicial de apreensão. Agora é processo longo.

Quero deixar bem claro que na história da imprensa brasileira durante o regime militar, as prisões, indiciamentos e recolhimentos não foram nem por calúnia, nem por difamação, nem por mentir, nem por racismo, mas por dizer a verdade. E não foram amparados apenas na Lei de Imprensa, mas principalmente nos Atos Institucionais de exceção e na censura prévia permitida por decretações de ‘estado de guerra’ e ‘estado de sítio’.

Por enquanto, estamos num limbo, numa terra quase sem lei e ninguém se atreve a imaginar onde isso irá nos levar. Só para constar, há três projetos de novas redações para a antiga Lei de Imprensa que tramitavam no Congresso, o mais antigo, há 14 anos. Certamente, serão arquivados e a atualização da regulamentação pós-regime militar, mantendo as garantias ao cidadão, ficará ausente por muito tempo.

******

Jornalista, diretor do programa Comunidade na TV da Fierj, Rio de Janeiro, RJ