Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jô Soares e a cruzada anti-regulação

Muitos articulistas da área de comunicação consideraram 2006 como o ano em que a mídia esteve na mídia. Nada mais salutar para uma sociedade democrática que os meios de comunicação digam o que são, de onde vêm e para onde vão. Pena que nem sempre a mídia é colocada em pauta da forma que deveria. Que o diga o apresentador da Rede Globo Jô Soares, que vem fazendo em seu programa uma verdadeira cruzada contra a classificação indicativa dos programas de TV elaborada pelo Ministério da Justiça.

O apresentador, campeão de audiência por seu estilo jocoso e por suas demonstrações de cultura geral durante as entrevistas, não consegue ser nem um pouco original quando se volta contra a classificação indicativa. Sempre que toca no assunto, o ex-humorista lança mão de argumentos batidíssimos, muito comuns no discurso dos porta-vozes dos coronéis da mídia tupiniquim: uma suposta brecha para a censura e a preservação da liberdade de expressão.

É óbvio que ele é sabedor de que as regras do Ministério da Justiça não representam censura. Mas Jô também é ciente da força e comprovada eficácia desses argumentos, que conseguiram barrar iniciativas como a criação do Conselho Federal de Jornalismo; e protelam ainda hoje projetos no Congresso que prevêem regras para a publicidade.

Bom funcionário

De fato, a classificação indicativa não é a melhor forma de tentar pôr ordem na bagunça da mídia brasileira, mas também está longe de simbolizar o renascimento dos anos de chumbo. Como bem informou o manifesto a favor da classificação indicativa, assinada por mais de vinte entidades da sociedade civil, ‘países de democracia consolidada adotam ferramentas similares à classificação, sem que nenhum órgão internacional de defesa dos direitos humanos as classifique como práticas de censura’ [ver ‘Carta aberta ao ministro da Justiça‘].

Teoricamente, o ato de apontar o que deve ou não ser assistido em determinada faixa etária seria censura em seu sentido lato, assim como o é o fato de Jô convidar para a sua famosa poltrona o sociólogo que corrobora com seu ponto de vista, em vez de um representante do Ministério da Justiça. Quem conhece o termo gatekeeping sabe do que estou falando.

Mas o verdadeiro alvo não é a mera classificação indicativa. A intenção de Jô e do grupo que ele representa é descartar o amadurecimento de qualquer tentativa de controle, é vetar qualquer chance de desenvolvimento do monstro chamado regulamentação. Os donos da comunicação enxergam nas orientações do Ministério da Justiça um germe do controle da radiodifusão. Derrubar a classificação indicativa representa abortar qualquer embrião de riscos futuros de controle da mídia – este, sim, a grande ameaça para as redes de TV brasileiras, sobretudo a da família Marinho. E Jô, como bom funcionário que é, está fazendo a sua parte.

Um universo hermético

Cansado de fazer críticas isoladas, Jô entrevistou na semana retrasada o sociólogo Demétrio Magnoli, que publicou recentemente um raivoso artigo no jornal O Globo em que execra a classificação indicativa, chegando ao sensacionalismo de compará-la a práticas do regime stalinista. Durante a entrevista, repleta de suas típicas tiradas bem-humoradas, Jô fez o mais infame dos comentários até então: as pessoas esquecem que a televisão é apenas um eletrodoméstico.

A afirmação, nem um pouco engraçada vindo de um comunicador, é cínica e, principalmente, de má-fé. Com o claro propósito de desinformar seu público, ele reduz a importância de um meio de comunicação que leva informação a mais de 90% dos lares brasileiros. A televisão é, de fato, um eletrodoméstico, mas diferentemente do liquidificador e do forno de microondas, ela informa, esclarece, entretém e, principalmente, forma opinião. Ao ligar esse ‘eletrodoméstico’ na tomada, ele emite informações capazes de influenciar na vida política do país, de mudar comportamentos, até de moldar a memória cultural de um povo. Um prosaico eletrodoméstico regido pelas regras constitucionais do serviço público.

A TV é tão eletrodoméstico quanto um computador, que não passaria de uma mera máquina processadora de dados, não fosse o volume e o conteúdo dos bits que percorrem a internet transmitindo desde mensagens familiares a investimentos na Bolsa de valores.

Para arrematar a entrevista com o sociólogo, Jô cita exemplos de auto-regulamentação em outros países – expediente, aliás, também usado por Magnoli em seu artigo. A auto-regulamentação que é o porto seguro da mídia brasileira ante a ameaça da organização da mídia nacional, vide o Conar e suas orientações risíveis, alardeadas quando se começou a questionar a publicidade na TV.

As falas de Jô não são novidade para quem acompanha o hermético universo da radiodifusão brasileira, mas para a massa que o admira, que não vai pra cama sem ele, soa com uma força gigantesca, considerando que a grande maioria dos brasileiros sequer tem conhecimento de que a TV e o rádio são serviços públicos, outorgados a terceiros por meio de concessões. Ainda bem que o programa é exibido na madrugada. Menos público, menos desinformação.

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Jornalista