Recomendo a leitura do texto da ombudsman do jornal espanho El País, Milagros Perez Oliva, avaliando os erros e acertos de uma matéria sobre homeopatia (ver ‘Homeopatía, de la creencia a la evidencia‘, 14/3/10) publicada por seu jornal. Em primeiro lugar, o autor da reportagem comentada por ela, Josep Garriga, fez muitas escolhas certas, a começar pelo tema. Homeopatia é um assunto de interesse do público, que precisa ser mais noticiado. A matéria é uma peça de jornalismo de referência, mistura de serviço e polêmica de atualidade, e por isso gerou, em apenas uma semana, mais de 600 comentários que podem ser lidos na web, além de numerosas cartas e telefonemas à redação. Uma resposta da cidadania sem dúvida superior à que deve ter recebido a matéria ‘Ratos são modelo para estudo de ansiedade‘, publicada na edição de domingo (14/3) do Estado de S.Paulo.
Não vou centrar meus comentários nos deslizes da matéria espanhola. Acredito que o autor trabalhou muito nela, e mesmo assim há agressões à verdade, como um exagero no número de médicos da especialidade na Espanha ou o perigoso equívoco de asseverar que os remédios homeopáticos têm os mesmos controles sanitários do que os produtos da medicina alopática. Mas há lições ainda mais gerais a serem tiradas do texto e da resposta dos leitores.
Apuração da matéria nunca é imparcial
Josep afirma que seu trabalho foi norteado por três princípios:
**
Falar com ambas as partes envolvidas, partidários e detratores;**
Não chegar a conclusão alguma e deixar a responsabilidade no leitor;**
Só falar com médicos especializados em homeopatia, à exceção do ganhador do Nobel de Medicina, o virologista Luc Montaigner.Em meu entender, três princípios discutíveis.
O que significa falar com ambas as partes envolvidas? No assunto medicinas alternativas não há duas partes; há múltiplas. Os pacientes – desencantados com as consultas médicas de dez minutos aceitas pelo establishment médico; os laboratórios homeopáticos – que ganham muito dinheiro – e os alopáticos – que perdem quando os outros lucram; os sistemas de saúde governamentais ou privados – que vêem na medicina alternativa a fórmula para diminuir o alto custo dos cuidados com a saúde; os que ‘acreditam’ – travestindo a ciência da medicina em exercício de fé; os pseudocientistas – que aceitam provas insuficientes como válidas quando coincidem com as idéias próprias etc. A lista é bem comprida e poderia continuar se fosse o objetivo desta crítica. Reduzir essa multiplicidade a ‘ambas as partes’ é insensato e imprudente. E há um problema a mais: o jornalismo em geral, e os que tratam de assuntos de saúde em particular, não podem dar o mesmo valor a teorias demonstradas e àquelas ainda por demonstrar.
O segundo critério defendido pelo autor, aquele de não chegar a conclusão alguma, é utópico. Em qualquer assunto jornalístico, focar uma parte da realidade obriga a deixar o resto na obscuridade. O jornalista pondera o tempo todo, na seleção das fontes, das palavras, dos dados. Seu feeling sobre o assunto pode ser mais ou menos evidente, mas até a vontade de ficar eqüidistante aos extremos exige uma definição prévia dos extremos, o que nunca é imparcial.
Efeitos colaterais graves
O princípio de não autoridade, que significa basicamente que não importa quem disse, mas que fundamentos apresenta, deveria nortear o jornalismo. O jaleco branco impõe respeito, porém nem sempre merecido. Há médicos bons e ruins, todo mundo sabe disso. O diploma (ainda mais se o detentor recebeu o Prêmio Nobel) é um critério de seleção válido. Entretanto, não isento de erros, paixões, mentiras (muitas vezes fantasiadas de estatísticas) e interpretações erradas. Às vezes a forma gramatical correta é a única diferença entre a palavra do ‘doutor’ e a do jogador de futebol avaliando a decisão do árbitro. Ou seja, o lado ‘científico’ da briga também não merece uma fé religiosa de parte dos jornalistas.
Até o sistema de publicação nas revistas científicas mais sérias com peer review (revisão por pares) é passível de melhorias. Por exemplo, existem dúvidas sobre se é publicada a totalidade do conhecimento ou unicamente o que coincide com a conveniência dos patrocinadores. Poderia dizer que, como a democracia, o método científico não é perfeito, mas é o melhor que temos. Por isso, colocá-lo ao mesmo nível que a medicina de ‘achismos’, ou baseada em evidências discutíveis dos seguidores da homeopatia, não é razoável.
Cosme Naveda, coordenador da área de terapias médicas não convencionais da Organização Mundial da Saúde (OMC), citado na matéria falando de homeopatia, me inspira a fazer uma reflexão sobre o jornalismo. Naveda disse ‘é possível prejudicar o paciente por ação ou omissão. Na homeopatia, não vai ser por ação, pela ausência de efeitos secundários, mas se não é realizado um diagnóstico claro, é possível demorar o tratamento’. Ele nos está chamando à luta. Não deixemos passar matérias pseudo-científicas. É nossa a responsabilidade de não prejudicar os leitores por omissão. Isso acontecerá se fecharmos os olhos frente a mostras de jornalismo com efeitos colaterais potencialmente graves.
******
Bióloga e jornalista especializada em saúde