No Brasil, são raras as condenações judiciais em decorrência de crimes financeiros. Manipulações da bolsa, advocacia administrativa, uso indevido de informações privilegiadas, evasão de divisas, sonegação e fraudes contra o mercado de valores mobiliários quase nunca resultam em punições relevantes aos seus praticantes.
O mesmo não é verdade no que diz respeito a órgãos de imprensa que denunciam práticas dessa natureza. O jornalista Rubens Glasberg, responsável pela revista Teletime, foi condenado ao pagamento de uma indenização que já soma mais de R$ 100 mil (valores corrigidos) por ter denunciado justamente conflitos de interesse envolvendo o ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários, Luiz Leonardo Cantidiano, e o grupo Opportunity, de Daniel Dantas. Entre junho de 2002 e março de 2004, Cantidiano presidiu a CVM, ao mesmo tempo em que a autarquia investigava o Opportunity Fund por possíveis crimes contra a legislação financeira brasileira. Cantidiano, por sua vez, havia sido advogado de várias empresas do grupo de Dantas, inclusive do próprio fundo sob investigação.
Um último recurso impetrado pelo jornalista Rubens Glasberg foi julgado no último dia 1º de setembro de 2010, pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Tratava-se de um agravo regimental, rejeitado por unanimidade. Glasberg recorria de decisões da Justiça do Rio de Janeiro, em primeira e segunda instância, que aplicaram a condenação e reconheceram a tese de danos morais alegada por Leonardo Cantidiano. Os advogados do jornalista ainda avaliam o cabimento de eventuais recursos.
A rejeição do recurso pelo STJ se deu exatamente duas semanas depois de, ironicamente, a Polícia Federal indiciar 42 cotistas do mesmo Opportunity Fund justamente pelos ilícitos que a investigação da CVM, metade dela transcorrida sob a gestão de Cantidiano, não logrou constatar.
Opportunity e Cantidiano
Logo que foi indicado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso para dirigir a CVM, em junho de 2002, diversos veículos de imprensa apontaram os vínculos entre Leonardo Cantidiano e o grupo Opportunity. Uma das preocupações decorria do fato de que, desde agosto de 2001, a autarquia conduzia um inquérito administrativo para apurar a presença de cotistas residentes no Brasil entre os investidores do Opportunity Fund, baseado no paraíso fiscal das Ilhas Cayman. O inquérito tinha o número IA 08/2001. Constatada a presença dos cotistas residentes no país, ficaria caracterizada a infração às regras do Anexo IV às quais o fundo do grupo de Daniel Dantas estava submetido. Tais regras davam ao fundo e seus cotistas isenções tributárias significativas, desde que fossem apenas estrangeiros os investidores.
A revista e o boletim online Teletime, do jornalista Rubens Glasberg, publicaram editorial questionando a isenção da CVM para conduzir diversas investigações em curso referentes ao grupo Opportunity, inclusive o IA 08/2001. Posteriormente, Teletime apontou em reportagens que Cantidiano havia sido advogado da empresa Forpart, investigada pela CVM por garimpagem de ações do Sistema Telebrás, e em fevereiro de 2003 revelou documentos que comprovavam a atuação de Cantidiano como advogado do próprio Opportunity Fund junto à CVM em 1996, justamente no processo de registro e legalização do fundo.
Depois da revelação de Teletime, nunca contestada e que teve ampla repercussão em outros órgãos de imprensa, manifestação de parlamentares e a instauração de uma investigação pela Controladoria Geral da União (CGU), Cantidiano foi homenageado com um almoço de desagravo reunindo mais de 400 advogados no Rio de Janeiro, a maior parte de escritórios de direito societário do Rio de Janeiro com intensa atuação junto à CVM. Dias depois, entrou com ação contra Rubens Glasberg, tendo como advogados Marcelo Trindade, Sérgio Bermudes (que também fora advogado do grupo Opportunity) e Hélio Saboya, ex-sócio de Cantidiano no escritório que prestava serviços ao grupo de Daniel Dantas. Na mesma época, Dantas também ingressou com mais uma ação contra o jornalista (de um total de cinco), com argumentação semelhante à de Cantidiano e pedindo para que as ações ficassem com o mesmo juiz, o que foi negado pela Justiça.
Teletime continuou apontando, em reportagens, os conflitos de interesse. Revelou, por exemplo, o fato de Cantidiano ter sido advogado e sócio de Daniel Dantas em empresas que serviam a uma complicada e misteriosa cadeia societária da operadora de telefonia Brasil Telecom, estrutura esta que buscava ocultar uma participação não declarada do Citibank dentro da empresa após a privatização.
Ao longo de 2003 e 2004 surgiram, a partir de informações da CPI do Banestado fornecidas pela procuradoria de Nova York, indícios da presença de cotistas brasileiros e remessas financeiras ilegais, a partir do Brasil e via doleiros, para o Opportunity Fund.
Coincidência ou não, Cantidiano renunciou ao mandato de presidente da CVM em março de 2004. Mas o então ministro Antônio Palocci indicou para substituí-lo na presidência da autarquia um de seus advogados contra Rubens Glasberg: Marcelo Trindade.
As pressões sobre a investigação da CVM acerca do Opportunity aumentaram à medida que apareciam na imprensa nomes de brasileiros que reconheciam ter recursos no Opportunity Fund. Um desses casos foi o do ex-senador Luiz Estevão, que admitiu ter remetido recursos ao fundo. Outro nome que apareceu nas reportagens da época foi o do empresário Romeu Chap Chap.
A CVM levou o IA 08/2001, que investigava o Opportunity Fund, a julgamento em setembro de 2004, sem que o próprio Daniel Dantas figurasse entre os implicados. Outros executivos e empresas ligadas ao grupo Opportunity, contudo, foram condenados pela autarquia a multas no valor total de R$ 480 mil. Mas a investigação não conseguiu apontar a presença de residentes no Brasil no fundo, exceto pelo denunciante, o empresário Luiz Roberto Demarco. Ao proferir seu voto, pela condenação, o então presidente da CVM, Marcelo Trindade, ex-advogado de Cantidiano na ação contra Glasberg, classificou o caso como mera ‘disputa societária’, ‘irrelevante’ ao mercado de capitais, e lamentou a ‘grande repercussão’ do caso na mídia.
A condenação
Um ano depois, em agosto de 2005, a juíza Myriam Medeiros da Fonseca Costa, da Justiça do Rio de Janeiro, condenou Teletime ao pagamento de R$ 50 mil por danos morais na ação movida por Cantidiano. A sentença, na ocasião, dizia: ‘muito embora a sociedade brasileira, como um todo, esteja vivendo momentos de angústia e perplexidade com os ‘valeriodutos e propinodutos’ que estão sendo revelados através da transmissão ao vivo do andamento das CPIs, assim como pela Imprensa, de um modo geral, o que é extremamente saudável para a Democracia e lhe dá a transparência necessária para que se possa avaliar a ética dos homens públicos e de como se comportam antes e durante a vigência dos mandatos que os legitimam como representantes do povo no Congresso Nacional, não é possível, a meu sentir, ao menos no caso em exame e diante das provas coligidas no processo, concluir que o réu atuou estritamente dentro do exercício legal do seu direito de informar e de criticar, não obstante a sua reconhecida respeitabilidade no ramo’. A decisão está disponível no link www.teletime.com.br/arquivos/decisao.pdf.
Rubens Glasberg, após a condenação, declarou: ‘O que fizemos foi mostrar que um servidor público, em um importante cargo, tinha inegáveis conflitos de interesse na função que ocupava. Era a nossa função, e continuará sendo, mostrar fatos como este à sociedade. Todas as informações publicadas acerca dos conflitos de interesse estão documentadas. O que foi a julgamento foram os editoriais com minhas opiniões baseadas em fatos verídicos, que continuam as mesmas’. Em seguida, recorreu da decisão.
Contudo, este primeiro recurso de Glasberg foi negado pela 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 20 de junho de 2006. Os advogados de Cantidiano alegaram que o ex-presidente da CVM havia se declarado impedido em todos os processos envolvendo o Opportunity que chegaram para votação no colegiado da CVM. Alegaram ainda que se essas declarações de impedimento foram posteriores às reportagens de Teletime, isso se deveu ao fato de que antes nenhum dos processos havia sido julgado. Segundo os advogados de Cantidiano, os editoriais de Rubens Glasberg não falavam de suspeitas, mas formulavam acusações diretas. O advogado de Cantidiano pediu que o valor da ação indenizatória fosse elevado para R$ 200 mil. A desembargadora relatora do processo, Conceição Mousnier, entendeu que Glasberg se ‘excedeu no exercício de seu direito à crítica’. Ela entendeu que o jornalista, ao intitular seu editorial ‘Quem vai tirar as raposas do galinheiro’, comparou Cantidiano a uma raposa e a CVM a um galinheiro. Segundo ela, ‘o fato de Cantidiano ter sido advogado do Opportunity não basta para acusá-lo de favorecer o grupo na CVM’. Ao mesmo tempo, votou contra o pedido de aumento do valor da indenização. Seu voto foi acompanhado pelos demais desembargadores.
Rubens Glasberg, na ocasião, declarou: ‘Uma decisão judicial deve ser cumprida ou, se for o caso, discutida em instâncias apropriadas. Acatá-la não significa considerá-la justa. Mantenho o que afirmamos em nossa defesa: os fatos noticiados são verídicos e relevantes e por isso cumprimos nosso papel de informá-los aos nossos leitores. Se nós e outros poucos jornalistas independentes não tivéssemos chamado atenção para estes fatos, eles poderiam ter passado despercebidos e Cantidiano ainda seria o presidente da autarquia, de onde, aliás, saiu sem maiores explicações, no meio de um mandato que iria até julho de 2007’.
Absolvição e indiciamento
Em 29 de agosto de 2007 quem se deu bem foi o grupo Opportunity. O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN, também chamado de Conselhinho) anulou a condenação contra o grupo imposta pela CVM em 2004 em decorrência do IA 08/2001. No entendimento dos conselheiros, não havia provas para aplicar a multa de R$ 480 mil aos executivos ligados ao Opportunity Fund. A CVM, que integra e vota nas decisões do Conselhinho, sequer defendeu a sua posição de três anos antes, resignando-se em ver seu trabalho ser desqualificado com base apenas nas palavras dos advogados do Opportunity.
Mas em julho de 2008 a Polícia Federal detonou a Operação Satiagraha, que investigou o Opportunity, incluindo o Opportunity Fund, e apontou em seus relatórios diversos indícios de irregularidades envolvendo o fundo de Daniel Dantas. O banqueiro, em decorrência da Satiagraha, já sofreu uma condenação, por corrupção, e teve recursos no exterior bloqueados por ordem da Justiça brasileira.
Como uma segunda consequência das investigações e das provas recolhidas durante a Operação Satiagraha, a Polícia Federal indiciou, em agosto de 2010, 42 cotistas do Opportunity Fund residentes no Brasil por evasão de divisas. Detalhe importante: foram apenas 42 indiciados porque a PF resolveu fazer um corte, pegando apenas aqueles investidores residentes no Brasil com aplicações superiores a US$ 100 mil. Alguns investidores foram indiciados por lavagem de dinheiro.
Segundo informações do jornal Folha de S. Paulo, um administrador do Opportunity Fund também foi indiciado por gestão fraudulenta, evasão de divisas e formação de quadrilha. ‘De acordo com a PF, administradores do fundo ofereciam a residentes no Brasil a oportunidade de burlar o Fisco, investindo no Opportunity Fund. Parte dos cotistas confessou saber que as aplicações no fundo eram ilegais’, disse a reportagem da Folha de 18 de agosto de 2010, citando a PF. A matéria diz ainda que doleiros envolvidos no caso Banestado ‘afirmaram que enviaram recursos para o Opportunity Fund e seus cotistas, de acordo com a PF’. Além disso, testemunhos de ex-funcionários do grupo Opportunity também revelaram as irregularidades, aponta o relatório final da Polícia Federal.
O Ministério Público ainda não denunciou estes investidores e uma eventual ação criminal contra eles ainda transcorrerá na Justiça por vários anos. Quanto aos xerifes e autoridades da CVM e do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (Conselhinho) que não constataram nada disso e no fim, inocentaram o grupo de Daniel Dantas, estes não devem, ao que se sabe, ser responsabilizados.
Os recursos para pagar a indenização por danos morais a Luiz Leonardo Cantidiano foram depositados pelo jornalista Rubens Glasberg em juízo desde que o recurso subiu ao STJ, ainda em 2006.