‘Eu e minha ignorância fizemo-nos ainda mais íntimos quando soubemos que Michael Moore, o documentarista de ‘Tiros em Columbine’ e ‘Roger e Eu’, também é jornalista. Quem me contou foi o Wagner Carelli, editor brasileiro de outra obra do americano, o livro ‘Stupid White Men – Uma Nação de Idiotas’ (W11 Editores), durante o programa ‘Comunique-se’ (allTV), no sábado.
Fiquei surpreso. Infelizmente, não me detivera no trabalho de Moore – mas o traduzira pela boca dos meus amigos e pelas análises da mídia. Defrontei-me com a sua existência ao dar uma olhada em uma dessas reportagens sobre a entrega do Oscar de 2003. As palavras do cineasta eram aquelas que muitos de nós embalávamos por aqui. Acho até que as havíamos pronunciado com teor idêntico (claro, excetuando-se o trecho em que se convocam os colegas ao palco do Oscar): ‘Chamei os outros indicados para melhor documentário ao palco porque nós gostamos de realidade. Gostamos da realidade, porque nós vivemos tempos fictícios, com eleições fictícias e um presidente fictício. Estamos lutando uma guerra por razões fictícias. Que vergonha, senhor Bush, que vergonha!’.
De minha parte, não me envergonho de não tê-lo descoberto antes, junto com os meus tantos milhões de compatriotas televisivos. Refiro-me não a Bush, a ameaça histriônica onipresente, mas ao artista: ‘As palavras [na cerimônia do Oscar] foram o gatilho que transformou Michael Moore em personalidade brasileira honorária por alguma razão. Afinal, se até nos Estados Unidos ele tem opositores – que acham Moore muito interessado em se mostrar nos filmes -, aqui, ele passou de desconhecido a estrela do canal por assinatura GNT, que sempre reprisa The Big One e TV Nation’, escreveu Rodrigo Salem, na revista SET, em maio de 2003.
O fato é que Michael Moore é um jornalista expelido do jornalismo, digamos, convencional, em que pese ter criado (‘Flint Voice’, mais tarde ‘Michigan Voice’) e trabalhado para publicações independentes – que também não o aceitaram. ‘…Suas idéias ‘proletariadas’ não foram bem recebidas na época – anos 80, durante o governo de Reagan – e o filho pródigo estava de volta à Flint em poucos meses. (…) A incompreensão dos ex-chefes o levou para projetos mais ambiciosos’, relata a SET, sobre a derivação para o cinema.
No ‘Comunique-se’, falou-se da suprema virtude de Michael Moore, a par de suas inovações ‘técnico-cidadãs’: ‘Ele mostra que o rei está nu!’, sublinhou Carelli.
Moore é aquele cara que peita figurão de multinacional e esfrega-lhe na cara a verdade que os outros chamam de ‘corte de custos’ ou ‘otimização do processo produtivo’. Não, diante de um ‘big-shot’, de um alto executivo de uma Nike, ele cobra e recebe explicações que nos levam a concluir: isso se chama exploração de mão-de-obra semi-escrava em países terceiro-mundistas (não, miseráveis mesmo). Todo mundo sabe disso – mas em outras palavras. Como diria o José Simão, tucanaram o cativeiro.
Lemos e ouvimos essas meias-palavras diariamente. O noticiário e as análises político-econômicas são as vedetes da hipocrisia.
Aqui, é o ‘nervosismo do mercado’. Tadinho, né… Apresentadores só faltam chorar na televisão, o pânico do encerramento de um pregão desvantajoso realmente acabará com o País – quiçá com o mundo. Mas só até o ‘otimismo’ do dia seguinte. Ficamos a sofrer, em solidariedade a especuladores, criminosos da usura que, entre um ‘nervosismo’ e outro, ‘subtraem’ o pouco que nos resta – se bem que para uns e outros sempre haverá bastante.
Ali, os conchavinhos dos cadernos de Política. Por vários anos, nós, jornalistas, mostramos que o senador ‘x’ extenuou-se de xingar o deputado ‘y’ de ladrão, de quadrilheiro, do raio que o parta. Hoje, vemos os dois no mesmo palanque, no mesmo gabinete, na mesma pocilga de intenções (que chamamos de projeto político). E o que dizemos? Fazemos um lembrete sobre as ‘sérias divergências do passado’ e, Maquiavel à cabeceira de nossas percepções comodistas, julgamos a aliança natural, ‘política é assim mesmo’. Pior: legamos essa distorção ao público. É a roda-viciada do disparate.
Michael Moore não seria polêmico se o mundo enxergasse e relatasse essas verdades banais. Ele não diz o que pensa, diz apenas o que vê (registre-se, em todo caso: o cineasta foi acusado pela revista nova-iorquina ‘Radar’ de ter armado, em ‘Tiros de Columbine’, a cena de uma agência bancária que, na abertura da conta, dá um rifle de brinde a cada novo cliente. De acordo com a revista, isso não é verdadeiro, a arma só é entregue depois da análise dos antecedentes da pessoa).
Chega das virtudes e dos defeitos dos outros, arremato com a minha própria contribuição à mediocridade: um aforismo-chavão, gasto pelos anos e pela persistência da maioria na reverência ao absurdo: em terra de cego, quem tem um olho é rei.’
ITÁLIA
Reali Júnior
‘Berlusconi é ‘inspiração do Espírito Santo’’, copyright O Estado de S. Paulo, 3/02/04
‘O primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, continua alimentando com suas iniciativas comentaristas e correspondentes estrangeiros baseados em Roma. Desta vez, ele aproveitou as comemorações do décimo aniversário de seu partido, Força Itália, para ler, na íntegra, um artigo publicado pelo teólogo italiano padre Gianni Baget Bozzo, dedicado a ele, Berlusconi. No artigo o teólogo afirma que a chegada de Berlusconi à vida política italiana, há dez anos, constituiu ‘uma inspiração do Espírito Santo’. Por isso, a partir de agora, esse fato deve ser considerado ‘um acontecimento espiritual’.
O Vaticano não escondeu seu mal-estar com o artigo e com a exploração política feita por Berlusconi. Após ler o texto, Berlusconi chamou o padre Gianni ao palco do Palácio do Congresso para abraçá-lo e pediu aplausos para ele. A discreta reprovação da Conferência Episcopal italiana foi manifestada por seu secretário, monsenhor Giuseppi Betori. Gianni foi convocado pela alta hierarquia de Roma para se explicar, no próximo dia 9, ao cardeal Tarcisio Bertone, arcebispo de Gênova.
A conversa não será fácil, segundo o vespertino francês Le Monde. O padre já havia assumido o compromisso, há dez anos, de se abster de toda atividade editorial em favor de um partido político. Assumira também o compromisso de solicitar autorização a sua diocese antes de participar de atos políticos públicos. Trata-se de um reincidente, pois já foi suspenso por não ter pedido autorização a sua hierarquia para aparecer numa lista de candidatos do Partido Socialista em Bari, em eleições européias.
A sanção só foi suspensa em 1994, nove anos depois. O padre Gianni decidiu mudar radicalmente de partido político, abandonando os socialistas, de centro-esquerda, e optando pela coalizão de direita de Silvio Berlusconi, liderada pela Força Itália. A devoção do teólogo católico por Silvio Berlusconi não poderia ser desconhecida da igreja, pois ele é um dos principais editorialistas do diário Il Giornale, do primeiro-ministro, dirigido por seu irmão Paolo Berlusconi. Logo, o padre Gianni nada mais fez do que enaltecer as qualidades ‘divinas’ do chefe e patrão.’
LÍNGUA PORTUGUESA
Deonísio da Silva
‘Pudores do Português’, copyright Jornal do Brasil, 9/02/04
‘Vaga-lume é palavra imposta arbitrariamente pelo padre e lexicógrafo Rafael Bluteau. Caga-lume e caga-fogo, nomes que o povo dera ao inseto luminescente, foram considerados obscenos pelo famoso dicionarista, autor do Vocabulário português e latino. A denominação original, entretanto, invenção de portugueses e brasileiros, apoiou-se em conhecido procedimento científico, a observação. Com efeito, o inseto acende sua luz na parte posterior do abdome.
Mas as funções excretoras, não apenas na língua portuguesa, são vinculadas a terríveis desgraças, explicitadas em palavrões e embutidas em alusões à sexualidade, integrando um batalhão de palavras e frases sacadas pelo falante para ofender e injuriar o interlocutor.
Quando o propósito não é injuriar nem ofender, o recurso é o eufemismo, de que são exemplos a expressão ‘ir aos pés’ e os verbos defecar e evacuar, embora este último seja empregado também em outros contextos, que alteram seu significado. Pois há grande diferença entre evacuar no banheiro e evacuar uma sala.
O propósito natural do pisca-pisca do inseto é aproximar macho e fêmea para a procriação, realizada à noite, em meia-luz, em sistema de iluminação portátil, que lembra boate particular, onde somente entra o casal portador das luzes. A luz, embora não seja psicodélica, é amarelo-esverdeada.
Bluteau, que viveu entre os séculos 17 e 18, era frade da ordem dos teatinos, congregação religiosa fundada em Roma por São Caetano de Tiene e Gian Pietro Caraffa, mais tarde eleito papa por quatro anos, com o nome de Paulo IV. Os luso-brasileiros relutaram em aceitar nomes derivados do latim (cincindela) e do grego (lampyris,), de onde veio pirilampo, para designar o inseto, preferindo caga-fogo e caga-lume. O frade queixava-se a seus pares de que somente a língua portuguesa, entre as neolatinas, acolhera ‘nome tão imundo’.
A palavra fez um longo e complexo percurso para chegar a vaga-lume, forma abonada por Machado de Assis no conhecido poema Círculo vicioso. A escritora portuguesa Joana Josefa de Meneses, Condessa de Ericeira, já evitara o ‘palavrão’, criando pirilampo, anagrama construído a partir do grego. Joana casou com o tio, que se suicidou – não por motivos lexicográficos, mas políticos – atirando-se da janela do palácio onde o casal morava.
Rafael Bluteau informa ainda que foram propostos à academia vagolume, fuzilete, noiteluz e bicho-luzente. Os dois primeiros não foram aceitos. O povo tem sobre a língua, queiram ou não os gramáticos, um poder avassalador. Não é a única palavra da língua portuguesa que teve excluídas alusões a funções sexuais ou excretoras. Também o comerciante de livros usados foi originalmente denominado caga-sebo, forma que o Visconde de Taunnay registra em suas memórias. Mais tarde virou apenas sebista. Algumas dessas interpretações podem ser encontradas no Dicionário brasileiro de provérbios, locuções e ditos curiosos, do polígrafo e jornalista cearense Raimundo Magalhães Júnior, imortal da Academia Brasileira de Letras, falecido em 1981.
Outro exemplo está no recurso ao ato sexual, que virou metáfora para a pessoa se dar mal na vida. Se não houvesse tal neurose sexual disfarçada na linguagem, o receptor retribuiria com agradecimentos comovidos, desejando igual sorte ao emissor e a seus familiares, com destaque para sua mãe, chamada de genitora em alguns contextos, mas nunca naqueles em que o propósito é injuriar o filho. Veja-se que ‘filho da mãe’ é expressão ofensiva, equivalente a bastardo.
Por falar em neologismo, recentemente até o CNPQ denominou ‘newsletter’ o seu boletim informativo, escrito em português e remetido a pesquisadores brasileiros.’