Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Juíza cala blog

No dia 22/3 a jornalista Ana Célia Pinheiro da Costa recebeu uma intimação da juíza da 1ª Vara do Juizado Especial Cível de Belém, Danielle Silveira Bürnheim. Era para ‘suprimir e retirar imediatamente’ do seu blog, A Perereca da Vizinha, a íntegra da publicação que havia postado no dia 11, ‘até a sentença de mérito’. Não cumprindo a ordem, sofreria multa diária de 3 mil reais.


Além disso, devia se abster ‘de fazer nova publicação, bem como qualquer alusão, menção ou ilação à imagem e ao nome’ do autor da ação cível proposta contra a jornalista, o desembargador Milton Augusto de Brito Nobre, que também integra o Conselho Nacional de Justiça. A vedação abrangia as referências feitas ‘de forma direta e explícita, bem como por qualquer outra forma que possa ser o requerente identificado, e ainda, tecer qualquer novo comentário ao nome do autor, acerca da veiculação em questão, por si e por todos aqueles que postam comentários no seu blog’. Em caso de infringência dessa proibição, a multa será de mil reais por cada nova publicação.


Assim, a justiça impôs censura prévia ao blog de Ana Célia Pinheiro em tudo que diga respeito ao ex-presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Em tese, nem elogiar o personagem a blogueira pode depois do despacho. A juíza Danielle Bürnheim concedeu a tutela antecipada do pedido tão logo ele foi-lhe apresentado, numa rapidez que de há muito deixou de ser a característica da justiça, mesmo nos juizados especiais. E tomou a deliberação apesar de não ser a titular da vara, na qual atua como substituta. Impôs medidas restritivas e sujeitou a ré a multas pesadas sem sequer apreciar o mérito da ação. E, estranhamente, o processo não estava cadastrado no controle eletrônico do tribunal até o dia 4/4.


Regime fechado


Dois dias depois de propor a ação de obrigação de fazer, com a antecipação de tutela, o desembargador ajuizou uma ação penal na 1ª Vara do Juizado Especial Criminal. Pelo que alega a queixa-crime, a jornalista teria cometido delitos de injúria, calúnia e difamação, mas a inicial preferiu enquadrá-la apenas em injúria e difamação. Muitos juízes consideram que esses dois crimes se materializam no momento em que o cidadão se considera ofendido, por se tratar de dano íntimo, pessoal, subjetivo.


No caso de calúnia, o réu poderia exercer a exceção da verdade, através da qual se compromete a provar o que disse, assumindo o pólo ativo da relação processual. Se de fato provar o que disse, reverte o efeito da ação. A argüição apenas de injúria e difamação visa um processamento mais acelerado, o que foi conseguido: a juíza Gildes Silveira Lima já designou a audiência, que será completa (conciliação, instrução e julgamento) para o dia 29, depois de ter sido cancelado o despacho remetendo os autos à apreciação do Ministério Público do Estado.


O desembargador Milton Nobre se considera ofendido, pessoalmente e junto com sua família, por acusações que lhe foram feitas no blog de Ana Célia Pinheiro. A jornalista questionou a moralidade de um contrato de aluguel de um imóvel do conselheiro do CNJ com o Estado e da contratação do seu filho pela procuradoria do município de Belém. O desembargador tem documentos que atestariam a lisura das duas situações, caracterizando o dano moral.


Ele podia ter exercido o direito de resposta, mandando uma carta para a jornalista, ou a interpelado judicialmente, como medida preparatória para as ações principais. Podia ter entrado logo com as ações cível e criminal. Mas foi além de tudo isso, ao requerer medidas que configuram censura prévia à manifestação de pensamento e liberdade de informação, protegidas desse tipo de interferência pela garantia constitucional. A antecipação da tutela é tão ampla que implicou em constrangimento ilegal, uma violência que só está se tornando cada vez mais freqüente no Brasil porque os prejudicados conseguem a guarida de magistrados inadvertidos para a gravidade da violação que acobertam.


Uma vez intimada da decisão, se continuasse a atacar o desembargador antes do julgamento do mérito da ação, estaria incorrendo no crime continuado, respondendo tantas vezes pelo delito quantas fossem as ações propostas, sujeitando-se a – nos julgamentos sucessivos que ocorressem – perder sua primariedade. Na reiteração da condenação, poderia sofrer a pena da prisão em regime fechado, o que certamente a faria refletir sobre o que estivesse escrevendo sem as cautelas de dispor de provas suficientes para demonstrar a veracidade de cada detalhe das suas informações.


Tramitação rapidíssima


Esta e outras previsões legais são suficientes para prevenir a consumação de dano irreparável às pessoas que se tornam alvo de algum procedimento leviano, irresponsável ou descortês da imprensa, sem que as medidas antecipatórias virem um recurso contumaz para personalidades demasiadamente suscetíveis e cidadãos sem a consciência do poder de que desfrutam.


Como integrante do CNJ e profissional de alta qualificação, o desembargador Milton Nobre devia ter evitado o excesso no pedir e no executar da sua pretensão. O cidadão comum, que pena pelos corredores forenses na busca pelo seu direito, haverá de se perguntar sobre a razão de a ação do desembargador ter tramitação excepcionalmente rápida e resposta plena. Chegará à conclusão de que, num poder ainda demasiadamente corporativo, há os ‘mais iguais’, que podem mais do que deviam à custa da integridade da democracia e do estado de direito.

******

Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)