A educação democrática da sociedade brasileira já provoca o questionamento da Justiça no país. Avaliação indispensável: como se sabe, a Justiça brasileira funciona mal e é perpetuadora, quando não promotora, de desigualdades sociais. A mídia deu uma contribuição tardia e até agora tímida para esse despertar da consciência, embora parte considerável de seu noticiário tenha relação com ações (e inações) da Justiça.
Compreende-se que quem enfrenta litígios nas diferentes instâncias do Judiciário tenha cautela ao examinar decisões de juízes e tribunais. Mas isso não isenta os veículos de comunicação da responsabilidade de ter uma visão crítica da Justiça ‒ embora respeitosa, como deveria ser em relação a qualquer cidadão ou instituição licitamente constituída. Essa visão deve dirigir-se em primeiro lugar, e sobretudo, aos escalões superiores da estrutura judiciária, porque é principalmente daí que emanam os bons e maus exemplos.
Nos últimos anos, a redoma que protege a cúpula do Judiciário foi rompida pela abertura de processo contra o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Paulo Medina, acusado, em 2007, de vender sentenças favoráveis a bingos e empresas que operavam caça-níqueis. Medina foi aposentado compulsoriamente em agosto de 2010, por decisão do Conselho Nacional de Justiça, e será julgado pelo Supremo Tribunal Federal.
Esse episódio, embora relevante e chocante, é lateral à questão central, que consiste em avaliar se as decisões da Justiça favorecem a proteção dos direitos e a democratização da sociedade, em harmonia com o que estabelecem a Constituição e a legislação infraconstitucional (nem uma nem outra acima de revisões).
Para cada sentença, muitas cabeças
Não se espera que haja uma só e bastante interpretação dos atos do Judiciário. Cabe à mídia refletir as diferentes posições vocalizadas, sempre que necessário traduzindo para a linguagem corrente o juridiquês, a fim de que os cidadãos formem sua própria opinião.
Elio Gaspari, em recente polêmica com o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, citou episódios marcantes em que o STF se curvou aos interesses do Executivo. Em 1936, a negação de habeas corpus destinado a evitar que Olga Benário, grávida, fosse deportada para a Alemanha, onde seria assassinada. Em 1968, quando a Câmara, majoritariamente governista, recusou-se a dar licença para processar o deputado Mário Moreira Alves e a Corte (não todos os ministros) silenciou diante da decretação do AI-5, resposta do regime à insubmissão. E em 1974, quando partiu do STF a ordem para prender o deputado Francisco Pinto, que chamara Augusto Pinochet de ‘ditador’.
Rui Barbosa defende revoltosos
Em 1943, para comemorar o vigésimo aniversário da morte de Rui Barbosa, João Mangabeira fez na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, uma conferência, logo desdobrada numa série de artigos publicados no Diário Carioca e reunidos em livro sob o título Rui ‒ Um estadista da República (há uma edição feita pelo Senado em 1999). João Mangabeira, discípulo e correligionário de Rui, foi deputado federal várias vezes, entre 1909 e 1950, quando se candidatou à presidência da República pelo PSB, partido que ajudara a fundar, com, entre outros, Sérgio Buarque de Holanda. Foi senador em 1930, ministro das Minas e Energia em 1962 e ministro da Justiça em 1962-63. Na narrativa sobre a atuação de Rui Barbosa entre 1889 e 1923, conquanto apologética, filtram-se percepções lúcidas, cujo interesse para o leitor não desapareceu.
Ao comentar a negativa do STF aos pedidos de habeas corpus impetrados por Rui, em 1892 e 1893, em favor dos envolvidos na chamada Revolta da Armada, Mangabeira transcreve trecho da argumentação do advogado (e jornalista) no mais importante dos julgamentos então havidos. A fala de Rui termina assim: ‘E aqui está porque eu tremo, senhores, receando que o julgamento desta causa venha a ser o julgamento desta instituição’. Só um dos 13 juízes, Piza e Almeida, votou pela concessão do remédio judicial. Em seguida, é Mangabeira quem condena:
‘Mas, ante a eloquência daquela oração, o Tribunal não se comove; ao texto claro da Constituição os juízes não se dobram; ante o sofrimento ingente das vítimas não se inclinam os julgadores. [….] Não reconhecem a verdade. E um a um, submissos ao poder [do marechal Floriano Peixoto], os votos vão caindo dos lábios da Justiça profanada’.
Desde o início da República, imprensa cortejou o STF
João Mangabeira faz, então, um comentário abrangente e expressivo:
‘O órgão que, desde 1892 até 1937, mais falhou à República não foi o Congresso. Foi o Supremo Tribunal. Grandes culpas teve, sem dúvida, o primeiro. Teve, porém, dias de resistência, de que saiu vitorioso ou tombou golpeado. [….] Sem estabilidade, sujeitos trienalmente a eleição, eram os membros do Congresso uma espécie de plantas marítimas, flutuantes no dorso da vaga. O Supremo Tribunal, não! Fê-lo a Constituição o guarda de sua letra, de seu espírito e de sua honra. O árbitro do seu destino. Por isso mesmo o erigiu sobre a rocha da estabilidade e da inapelabilidade [destaques do autor].
Mangabeira menciona outros mecanismos de proteção do STF: juízes (então) vitalícios, inamovíveis e com vencimentos ‒ os mais altos do funcionalismo brasileiro ‒ irredutíveis. E conclui o raciocínio:
O Congresso, exposto, sempre, sem defesa, a todos os ataques da imprensa, ainda os mais violentos e caluniosos. O Supremo Tribunal, ao contrário, pela soma enorme de interesses, da liberdade e da propriedade, sobre que tinha de proferir, sem apelo, a última palavra, sempre poupado e cortejado. Era mesmo muito menos arriscado atacar o presidente, que, ao cabo do quatriênio, volveria à vida privada, quase sempre isolado e sem amigos, do que um ministro do Supremo Tribunal, garantido pela vitaliciedade, até o último dia da existência, com um voto irrecorrível’.
Chamar as coisas pelos nomes
Tem raízes fundas, constata-se, a atitude às vezes timorata, às vezes complacente da imprensa em face do Judiciário, atitude que só recentemente, mais de vinte anos depois do início da redemocratização e quase vinte de promulgada a Constituição, começou a ser superada, num processo que não tem volta.
Chama a atenção, ao mesmo tempo, que entre o início da República e 1937, quando as liberdades foram truncadas no país pelo Estado Novo, tenha havido entre políticos tal independência e tal coragem de chamar as coisas pelos nomes, como fez Rui Barbosa, entre outras ocasiões, sob a ditadura de Floriano, o que o levou ao exílio.
Mangabeira falou em março de 1943, num momento em que o governo brasileiro já declarara (em agosto do ano anterior) guerra à Alemanha e à Itália, e após a capitulação de Von Paulus em Stalingrado (em 31 de janeiro), que fez a balança da guerra contra o nazismo se inclinar para os Aliados, mas quando ainda estava distante o fim da ditadura de Vargas.
Rui Barbosa e João Mangabeira não viam em ninguém, mesmo situado no topo do poder, autoridade maior que a deles para se sentir responsáveis pelos destinos do país. Isso lhes permitiu esgrimir contra o STF, e presidentes da República, a reprovação ou o apoio que julgaram merecidos. Exemplo de consciência independente e de visão ampla que pode ser inspiração e estímulo para políticos ‒ e jornalistas ‒ de hoje.