Há quase um mês, os ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), estarreceram o País com um diálogo bastante ríspido. Foi no dia 22 de abril, uma quarta-feira, durante uma sessão pública da mais alta Corte do País. O nível de agressividade entre os dois magistrados atingiu o grau do inacreditável quando, sentindo-se desrespeitado por Gilmar Mendes, presidente da Casa, Joaquim Barbosa bradou: ‘Vossa Excelência quando se dirige a mim não está falando com os seus capangas do Mato Grosso.’ A sessão foi logo encerrada, mas ficou ecoando por muito tempo. Todo o diálogo tinha ido ao ar, ao vivo, pela TV Justiça.
Agora, vai-se formando um curioso entendimento na comunidade jurídica brasileira sobre a causa do desconforto: as câmeras da TV Justiça. Segundo avaliam juristas das mais diversas correntes doutrinárias, o mal-estar ocorreu porque a cena foi transmitida, sem cortes, em tempo real. Eles argumentam que o que deve ser reexaminado não é a conduta dos ministros em público, mas o hábito recente do STF de transmitir seus julgamentos por sua própria emissora de televisão. A proposta que ganha corpo, enfim, é a de acabar com a transmissão ao vivo dos julgamentos da Suprema Corte brasileira.
Será que isso resolveria a questão? Ou apenas abrandaria a visibilidade das contradições que moram dentro do STF? É o caso de refletir um pouco mais.
Experiência saudável
Antes de tudo, reconheçamos que cúpula do Judiciário no Brasil foi arrojada e pioneira quando resolveu, há poucos anos, exibir ao vivo suas sessões. Nenhuma outra democracia tinha esse costume. Mais recentemente, o México seguiu o mesmo caminho, mas, ainda hoje, as Cortes dos demais países preferem funcionar longe dos holofotes, numa cautela bastante compreensível. A função de julgar exige, como poucas, a virtude da discrição. A tentação do exibicionismo corrói impiedosamente a autoridade de qualquer magistrado. Um juiz deve se afirmar pela serenidade, pela ausência de vaidades: juiz justo é juiz que não gosta de aparecer.
De outro lado, a sociedade contemporânea é definida pelas virtualidades, pelas telepresenças, pelas instituições midiáticas. Os espaços públicos não são mais apenas os espaços físicos, mas aqueles integrados pelas novas tecnologias. Hoje, as pessoas declaram Imposto de Renda pela internet, seguem a campanha eleitoral pela TV e votam em urnas eletrônicas. Assim, quando a Constituição brasileira afirma que todo julgamento deve ser público (artigo 93, inciso IX), nada mais lógico do que torná-lo disponível ao público também por meios eletrônicos. Por que não?
Salvo alguns deslizes, a experiência da TV Justiça vem mostrando que, em geral, é possível conciliar a inovação de transmitir os julgamentos com o dever da discrição dos magistrados. Num país continental como o nosso, as transmissões ao vivo permitem que os brasileiros, onde quer que estejam, acompanhem, se quiserem, as manifestações dos ministros do STF sem atraso, ou seja, sem ficar em desvantagem em relação àqueles que podem comparecer fisicamente à sede do tribunal. Tem sido uma boa experiência.
Definição constitucional
Para que se compreenda melhor o significado mais profundo dessa inovação é preciso que se conceba a TV Justiça menos como instrumento de propaganda de um Poder – ou um instrumento de promoção de seus integrantes – e mais como um serviço público. Sem dúvida, a TV Justiça faz divulgação de um dos Poderes da República e, nessa perspectiva, funciona como uma ferramenta de relações públicas.
Ao mesmo tempo, e aqui está o seu sentido mais legítimo, ela dialoga com o público e, por meio desse diálogo, recebe as demandas da sociedade, mesmo que sejam demandas silenciosas, não declaradas. Para conseguir se comunicar minimamente, ela se vê instada a atender aos direitos e às necessidades de seu telespectador e, por isso, ainda que de forma não calculada, acaba contribuindo para conferir mais transparência ao Judiciário. O que é muito positivo.
Se vista apenas como ferramenta de propaganda, é claro que a TV Justiça teve um dia infeliz quando veiculou, na íntegra, as agressões verbais trocadas pelos dois ministros. Inadvertidamente, ela expôs um fato negativo para a própria casa. Por outro lado, poucas vezes foi tão útil à cidadania. Há um detalhe nada desprezível nessa história: as ofensas que foram ao ar foram pronunciadas de fato, de verdade, durante uma reunião oficial dos ministros, uma reunião que, segundo manda a Constituição, tem de ser pública. Isso significa que, por mais desagradável que tenha sido para a imagem do Judiciário, aquela foi uma cena pública, pública por definição constitucional, e o cidadão tinha (e tem) o direito de conhecê-la e de entendê-la. Logo, aos olhos da sociedade, a TV Justiça cumpriu um bom papel.
Melhor caminho
Mesmo assim, alguns juristas, agora, falam em substituir as transmissões ao vivo por versões editadas das sessões, mais concisas, mais enxutas, que seriam exibidas depois. Não é uma boa ideia: além de empobrecer o que já existe, ela se revelará impraticável. Para viabilizar essas edições, o STF teria de contar com um supereditor, um ser iluminado que, sendo mais prudente que os próprios ministros, fosse capaz de recortar as declarações e os votos de cada um deles, resolvendo, acima deles, o que mereceria ir ao ar e o que deveria ser suprimido.
Será que os ministros se submeteriam a isso? Eles aceitariam que a TV do próprio tribunal eliminasse de suas manifestações os trechos tidos como inadequados? Dificilmente.
Por tudo isso, o melhor caminho, agora, é manter as transmissões e confiar na serenidade dos ministros. A decisão, de todo modo, depende do próprio STF. Mais uma vez, ele há de fazer justiça. Ao vivo.
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O Supremo, ao vivo e em cores — Lilia Diniz******
Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP