Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Lavagem cerebral e racismo

Assisti no domingo (14/3) ao programa Fantástico, da Rede Globo, somente para acompanhar a chegada do presidente Lula ao Oriente Médio. E mais uma vez foi nítido e perturbador ver que a lavagem cerebral e a manipulação dos fatos são feitas à vontade. Menos de 30 segundos foram dedicados pelo programa a um evento tão importante. Tão histórico. Disseram mais ou menos assim: ‘No dia em que Lula chega a Israel, a polícia israelense prende perigoso terrorista’. E c’est fini!


Na visão racista daqueles que dominam a região, com o apoio incondicional do império estadunidense, qualquer palestino, por mais pacato e modesto que seja, poderia ser considerado ‘terrorista’. Quem quiser comprovar essa prática segregacionista, desumana, leia o que relatei aqui.


Fico abalado ao ver essas coisas, ao ponto de qualquer especialista na área de psicologia poder atestar que de fato estou tendo a reação de quem acabou de ser agredido, se examinado por eles após o término do meu exercício de espectador. Meu organismo reage ao ponto de eu não conseguir dormir.


Se enxergo a lavagem cerebral sendo praticada, é porque não permito que lavem o que é meu, pois já está muito limpo há muito tempo, desde que li bons autores e assisti a entrevistas com pessoas que ampliaram a minha visão.

Enxergo na condição de uma vítima que sofre com os reflexos dessas campanhas, enxergo na condição de um pai que sabe que seus filhos também sofrerão se isto não for rapidamente eliminado. Avós, pais e eu sofremos na pele e nos sentimentos o efeito dos frutos desses venenos: preconceito, exclusão, ódio, portanto, por não querer que os filhos e netos passem pelo mesmo sofrimento, preciso reagir.


Quem é contra as cotas para negros?


É tão covarde e sutil o ato e o efeito da sujeira cerebral provocada pelos meios de comunicação de massa que até na justiça é difícil provar o crime. Posso citar, como exemplo, uma prática estúpida imposta aos produtores de locação para filmes publicitários, profissão que exerço.


O produtor de locação, a fim de conseguir a local ideal para o filme que está produzindo, precisa fazer muita pesquisa de campo e ter diplomacia suficiente para conquistar a confiança do proprietário do imóvel – seja um sítio, escritório, ou qualquer outro ambiente – e convencê-lo a permitir a entrada de dezenas de pessoas, muitas vezes por ele desconhecidas, em sua casa ou ambiente de trabalho.


Numa dessas pesquisas, enquanto eu fotografava uma casa, o proprietário comentou que achava muito interessante o meu trabalho. Respondi que achava prazeroso, depois de passar pelo estresse devido à desconfiança inicial, o que sempre acontece.


Em geral, as pessoas pensam, de imediato, que se está armando um golpe ou assalto. Acho até ‘natural’ que pensem assim, pois tantas são as enganações de que podemos ser vítimas.


Aí ele se empolgou e afirmou com todas as letras: ‘Se você fosse negro, eu nem teria aberto o portão’.


Naquele momento me dei conta de que eu não tinha conhecimento de nenhum produtor de locação negro no Rio Grande do Sul. Resolvi pesquisar e pude observar que, nas principais capitais do Brasil, não existe produtor de locação negro.


Atores, modelos, maquiadores, apoios de set, elenco e figurino, nesses casos há sempre uma certa quantidade de profissionais negros, principalmente se o produto é destinado a esse segmento da população. Mas produtor de locação, não!


Isso é o resultado de uma sujeira cerebral que fizeram lá atrás, cujos efeitos devastadores podem ser identificados em praticamente todos os setores da sociedade.


Não se pode obrigar uma produtora a contratar produtor de locação negro, e ainda que elas contratem, não há lei que obrigue o proprietário de qualquer imóvel a recebê-lo, deixar que ele tenha acesso ao seu imóvel, inspecione o local detalhadamente, fotografe e colha informações importantes para a produção do filme.


Só haverá no Brasil produtores de locação negros depois que a sujeira for totalmente limpa. Aí teremos todos trabalhando e estudando sem que a lei obrigue a contratação ou admissão de uma cota de negros. Enquanto isso não acontece, as cotas são necessárias sim!


Luz! Câmera! (Fora os negros!) Ação!


Nos anos de 1986 e 1987, produzi vários audiovisuais para fábricas de móveis, calçados, lãs, doces… Essas produções tinham como destino empresários europeus, eram amostras da qualidade do produto oferecido no exterior. O vendedor viajava com a fita e mostrava todo o processo do produto. Se fossem móveis, mostrávamos o tipo de árvore utilizada para a produção da madeira e fabricação do produto. Se fossem calçados, mostrávamos o gado no campo, as espécies que forneciam o couro, até os sapatos sendo acondicionados nas caixas. Nos filmes, mostrávamos todo o processo de fabricação, a fim de comprovar a qualidade do que estava sendo oferecido, uma vez que era impossível levar amostras reais de todos os produtos, e somente as fotos não eram suficientes para registrar seus aspectos mais importantes, desde as matérias primas até as linhas de produção.


Esses comerciais eram produzidos por meio de uma produtora que pertence a um grande grupo de comunicação gaúcho. A recomendação que nos davam era de que tivéssemos cuidado de não mostrar negros nas fábricas. De forma alguma a mercadoria poderia estar relacionada com o trabalho de negros.


Era muito constrangedor pedir ao operário negro que operava a máquina que iríamos gravar para ele trocar de lugar com o seu colega loiro de olhos azuis, que trabalhava numa máquina fora da lente da câmera. Era constrangedor e triste, porque era notório que eles ficavam contentes com a nossa presença. Sentiam-se importantes porque seriam filmados… Alguns se recusavam a trocar de lugar ao serem solicitados, aí o chefe de plantão dava uma bronca e logo tínhamos uma equipe de trabalhadores loiros operando as máquinas que filmávamos. Até parecia que aquele trabalho estava sendo realizado numa indústria na Suíça.


Com certeza, muitos desses empresários que resolveram trazer seus negócios para o Brasil procuraram os ‘suíços’ daqui para formarem suas equipes administrativas, pois eles já haviam ‘provado’ que trabalhavam bem e por isso teriam preferência na contratação. Para os negros, se ainda sobrassem algumas vagas nas linhas de produção, poderiam ser admitidos; mesmo assim, no caso de exposição pública das imagens dos setores da fábrica, teriam que ser retirados da cena.


Apesar do mal-estar que aquilo me causava, eu precisava trabalhar e aquela era a minha profissão, produtor de set.


Quantas pessoas estão hoje assistindo, em seus próprios ambientes de trabalho, à prática de racismo, sentindo-se impotentes, sem poder tomar uma atitude maior, mais contundente, mais efetiva?


Não sabia por onde começar, mas sentia a necessidade de fazer alguma coisa para reverter esse quadro degradante.


Hoje já não aceito trabalhar em alguma coisa que implique prática racista. Isso é resultado da conscientização que vamos assumindo a cada dia, a cada texto que lemos, a cada conversa entre amigos, a cada injustiça que testemunhamos. Só isso pode ser chamado de evolução.


O resto é atraso.

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Cineasta e produtor de TV