O movimento feminista trava uma luta histórica pela legalização do aborto no Brasil. As brasileiras estão submetidas a uma legislação que remonta a 1940, pela qual o aborto é considerado crime, com punições previstas para a mulher e para quem a ajuda, salvo em duas condições: gravidez resultante de estupro ou risco de vida para a gestante.
Das páginas policiais para as de cotidiano, política e comportamento. Este foi o salto na abordagem do aborto pela mídia, nos últimos anos. Uma nova cobertura, provocada pela atuação do movimento feminista, vem pautando a mídia a partir da necessidade da revisão da lei punitiva do aborto.
Esta nova abordagem acerca do aborto se consolidou a partir de 2003 e se intensificou em 2005. Os fatos políticos novos que deram fôlego a essa perspectiva, no âmbito do governo, foram a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e as posturas avançadas adotadas pelo Ministério da Saúde, sobretudo na normatização da atenção ao abortamento inseguro. No movimento social foram criadas em Brasília, em fevereiro de 2004, as Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, ampla articulação política pelo acesso ao aborto legal e seguro, segundo a decisão da mulher, em reunião organizada e coordenada pela Rede Feminista de Saúde e realizada sob a coordenação metodológica do Instituto Patrícia Galvão – Comunicação e Mídia (SP).
Em julho de 2004, convocada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, realizou-se a 1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, com a participação de quase 2 mil mulheres de todo o país, cuja plenária referendou, por ampla maioria, diretriz que previa a revisão da legislação que trata do aborto. A legalização do aborto já havia sido aprovada em 26 das 27 conferências regionais, em trabalho das Jornadas, com base sobretudo nos Fóruns Estaduais de Mulheres (AMB) e regionais e filiadas da Rede Feminista de Saúde.
Nova polêmica
Após a conferência, o governo anunciou a criação de um Grupo de Trabalho Interministerial para elaborar o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que apresentou como Prioridade 3.6: ‘Revisar a legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez’. Para tanto, deveria ser constituída uma comissão tripartite, com representantes dos poderes Executivo e Legislativo e da sociedade civil para encaminhar proposta de revisão da legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez, sob a responsabilidade do Ministério da Saúde e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, com prazo para 2005 (página 64).
Em dezembro de 2004, a ministra Nilcéia Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, anunciou em rede nacional de televisão o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e a instalação da Comissão Tripartite para a Revisão da Legislação Punitiva sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez. Em fevereiro, Severino Cavalcanti (PP-PE) foi eleito presidente da Câmara, conhecido por sua postura conservadora, antiaborto e contra os direitos das mulheres. Um obstáculo inesperado, como vários jornais reconheceram.
Em março, a Rede Feminista de Saúde lançou o dossiê ‘Aborto: mortes preveníveis e evitáveis‘. O documento apresenta dados sobre aborto, entre 1999 e 2002. A Folha de S. Paulo o divulgou, no dia 7 de março, com exclusividade. A partir de então, o dossiê se tornou fonte permanente de consulta para jornalistas.
Nos meses de fevereiro e março, os grandes jornais – mas não as revistas semanais – informaram sobre a polêmica criada em torno da definição dos integrantes da comissão. O jornal que deu maior cobertura a este processo foi a Folha. A comissão tripartite se instalou no dia 6 de abril, com a seguinte composição: seis representantes do Poder Executivo (SPM, Ministério da Justiça, Ministério da Saúde, Casa Civil, Secretaria Nacional de Direitos Humanos e Presidência da República), seis representantes do Congresso Nacional (os senadores Eduardo Suplicy do PT-SP, João Capiberibe do PSB-AP e Serys Slhessarenko do PT-MT; e as deputadas Elaine Costa do PTB-RJ, Suely Campos do PP-RR e Ângela Guadagnin do PT-SP) e seis representantes da sociedade civil (Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia, Articulação de Mulheres Brasileiras, Rede Feminista de Saúde, Fórum de Mulheres do Mercosul, Secretaria de Mulheres da CUT e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Ao lado da crise
Confirmando sua linha mais conservadora, o Jornal do Brasil publicou na seção Opinião, um dia após a instalação da tripartite, artigo do advogado Ives Gandra Martins intitulado ‘Um plebiscito necessário’, defendendo que o direito à vida não pode ser decidido por um pequeno grupo de ideólogos, feministas ou intelectuais. Apesar de intenso (nove reuniões entre 6 de abril e 8 de julho), o trabalho da comissão não repercutiu na imprensa, embora o site da SPM registre todas as reuniões. Exceção feita a matéria do Correio Braziliense do dia 25 de maio, dando conta de que os representantes do Legislativo estavam ausentes das reuniões da Comissão.
As revistas semanais, importantes formadoras de opinião, apenas ‘pincelaram’ o tema, com exceção da IstoÉ que, mesmo diante de um debate nacional, manteve-se em silêncio. O articulista da revista Veja André Petry, em vários ocasiões, fez reflexões pertinentes sobre a laicidade do Estado brasileiro e o direito de decidir das mulheres.
Há cerca de um mês e meio, entrou no páreo, junto ao noticiário nacional sobre a crise política em curso, a proposta de revisão da lei punitiva do aborto, que vem ocupando, gradativamente, espaços importantes na mídia. O silêncio dos jornais foi quebrado a partir de um grande esforço de articulações feministas que resultou em matérias, principalmente, na Folha de S. Paulo, no Estado de S. Paulo e no Correio Braziliense.
No Globo, pobreza e violência
A Folha informou sobre o resultado do trabalho da comissão, encerrado em 1º de agosto, e seu ‘produto’: um anteprojeto de lei que legaliza o aborto no Brasil. Segundo o anteprojeto, toda mulher tem direito à interrupção voluntária da gravidez, realizada por médico e condicionada ao consentimento livre e esclarecido da gestante. Além disso, está garantida a interrupção voluntária da gravidez em qualquer das seguintes condições: até 12 semanas de gestação; até 20 semanas de gestação, no caso de gravidez resultante de crime contra a liberdade sexual, de diagnóstico de grave risco à saúde da gestante e de diagnóstico de malformação congênita incompatível com a vida ou de doença fetal grave e incurável.
Apenas a Folha se manifestou sobre o assunto, em editorial do dia 31 de julho, considerando o anteprojeto ‘uma necessária revisão das defasadas disposições do Código Penal que versam sobre a matéria desde 1940’. Com menos intensidade, o Correio Braziliense abordou o tema em cobertura polifônica, com perspectiva de ampliação dos debates.
Mantendo coerência com sua linha editorial, que acredita na associação entre pobreza e violência, o Globo publicou entrevista com o economista americano Steven Levitt, professor da Universidade de Chicago, que afirmou: ‘Se o aborto for legal, barato e ao alcance de todos, acho que os crimes diminuiriam sensivelmente no Brasil’.
Clandestinidade e subnotificação
Nas reportagens assinadas pela jornalista Cláudia Collucci (Folha) e Lígia Formenti (Estado), percebeu-se uma democratização das fontes: a Igreja, que sempre ocupou espaços privilegiados, passou a ter que debater com as feministas, bem como com outros segmentos favoráveis ao direito de decidir das mulheres (juristas, médicos, antropólogos). Entre as revistas semanais, apenas a Época discorreu sobre o anteprojeto, enfocando o trabalho das ativistas pró-aborto. Os(as) leitores(as) vêm se manifestando. Durante duas semanas, o aborto esteve entre os três principais temas comentados pelos leitores da Folha, demonstrando que a sociedade não está alheia ao debate.
As matérias produzidas até agora, de uma forma ou outra, quando abordam a descriminalização do aborto, não tratam apenas das mudanças no texto legal, mas problematizam as graves questões sociais e de saúde pública envolvidas. Neste debate, o que deveria nortear a cobertura é a idéia de que não se trata de angariar maior ou menor simpatia, mas levar em conta a perda das vidas de milhares de mulheres anualmente, em geral jovens, pobres e negras.
Os números acerca da prática do aborto no Brasil foram por demais divulgados. Mas, embora assustadores, ainda assim não refletem toda a realidade do abortamento inseguro, praticado pelas mulheres em meio ao dilema do crime e do pecado. Repórteres buscam números exatos, mas encontram estimativas, devido à clandestinidade da prática e a sua subnotificação. As mulheres buscam soluções domésticas arriscadas, que podem ir do chá à introdução de objetos pontiagudos no útero; quando têm dinheiro, recorrem às clínicas bem-equipadas espalhadas pelo país. Mas muitas morrem sem atendimento médico-hospitalar.
Espaço de interdição
Não é possível falar em números absolutos. Mas, vamos lá! Por ano, em torno de um milhão de mulheres brasileiras, por razões diversas, se submetem ao aborto inseguro, em locais inadequados, praticado por mãos inábeis. Esta é a quinta causa de internação hospitalar de mulheres no Sistema Único de Saúde, respondendo por 9% dos óbitos maternos e por 25% dos casos de esterilidade por problemas tubários, segundo o Diagnóstico da Campanha por uma Convenção Interamericana pelos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos.
Por isso, os números, na cobertura da imprensa, são mais ilustrativos, sem muito destaque. O foco é a argumentação e a contra-argumentação sobre descriminalizar, legalizar e despenalizar o aborto. As vozes das feministas têm encontrado eco em algumas publicações, deixando explícito que seguir ou não com uma gravidez, ter ou não ter filhos, é uma decisão da mulher por questão de direito. Por outra via, a contra-argumentação que alimentou a criminalização até hoje aparece eivada de conceitos, princípios e dogmas religiosos.
Na verdade, através dos séculos, o corpo da mulher tem sido espaço de interdição e de decisões tomadas por terceiros, palco do desfrute de uma cultura patriarcal casada com um sistema econômico de exploração. Mas as mulheres mantêm várias formas de resistência, e a legalização do aborto é a fronteira final na garantia do exercício pleno e autônomo dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos.
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Coordenadora da Área de Comunicação da Rede Feminista de Saúde; jornalista e assessora de imprensa da Rede Feminista de Saúde