A total liberdade de expressão existe ou é uma utopia? No mundo atual, globalizado, de comunicação instantânea, a imprensa vem mostrando nos últimos dias que a livre expressão de idéias está ficando cada vez mais limitada, seja pela censura das leis, seja pela autocensura.
Um episódio recente na França veio provar que a liberdade de expressão total é ilusória. E cada vez mais limitada, sobretudo pelo fanatismo islâmico. Mas não somente pelos integristas, pois na França há uma lei que pune como crime quem defende teses negacionistas, isto é, teses que negam ou minimizam o genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial. Várias pessoas, inclusive o líder direitista Jean-Marie Le Pen, já enfrentaram os tribunais por terem manifestado publicamente idéias negacionistas. Essa lei não é unanimemente aceita pelos historiadores, que defendem uma historiografia sem censura legal.
Mas em vez de abolir a lei Gayssot, que pune negacionistas, os franceses estão querendo aprovar mais uma lei nesse sentido. Ela vem provocando uma grande polêmica na imprensa pois punirá também como crime o negacionismo em relação ao genocídio dos armênios pelos turcos, em 1915. O debate está todos os dias na imprensa e a lei tem grande chance de ser aprovada.
No mês de setembro, um artigo de jornal transformou um professor francês em alvo dos fundamentalistas islâmicos. Professor de filosofia de um liceu nos arredores de Toulouse, Robert Redeker cometeu um grave delito: escreveu no jornal Le Figaro um artigo violentamente anti-Islã. Entre as assertivas do professor, havia frases como esta: ‘Chefe de guerra sem piedade, vândalo, autor de massacres contra judeus, polígamo, é assim que Maomé se revela através do Alcorão’.
Obviamente, todo muçulmano sente-se ofendido com essa imagem negativa do profeta. E como o texto de Redeker era um verdadeiro libelo contra o Alcorão e a religião muçulmana, os fundamentalistas não se contentaram em ficar indignados. Uma fatwa foi lançada contra ele. Resultado: Redeker vive desde o dia 20 de setembro sob a proteção da polícia, mudando freqüentemente de domicílio, para fugir às ameaças de morte decretadas via internet.
Um manifesto em sua defesa foi publicado no jornal Le Monde assinado por um punhado de intelectuais como Bernard-Henri Lévy, Elisabeth Roudinesco, Elisabeth Badinter, Alain Finkielkraut, Alexandre Adler e Claude Lanzmann, entre muitos outros.
Affaire Dreyfus
Uma frase do manifesto de defesa, no entanto, chocou um outro intelectual, o historiador Jean Baubérot, que publicou três dias depois um longo artigo no mesmo jornal para dizer que defendia o manifesto, mas não podia estar de acordo com a íntegra do texto que pretende defender Redeker, ‘não importa o conteúdo de seu artigo’.
Baubérot relembra o ‘affaire Dreyfus’ e levanta a hipótese de um grupo extremista da época ter ameaçado o autor de um artigo anti-semita. Para defender o direito à vida desse autor, será que os intelectuais daquela época escreveriam ‘não importa o conteúdo de seu artigo’, pergunta o historiador? E Baubérot conclui:
‘Os estereótipos são permanentes, o que mudam são as minorias que eles transformam em bodes expiatórios. A luta contra a intolerância não deve dispensar a luta contra a burrice do ódio’.
Jean Baubérot vê no conjunto do texto de Redeker um revival do discurso macartista contra o comunismo, sendo que dessa vez dirigido contra o Islã.
O episódio Redeker não gerou somente manifestos de apoio. A Liga dos direitos Humanos (LDH) escreveu:
‘O senhor Redeker nos habituou a seus excessos que traduzem seu pouco rigor intelectual como seu ódio ao Islã e aos muçulmanos’.
O texto diz que ele deve ser defendido apesar de suas idéias repugnantes – que não podem ser combatidas transformando-o em vítima.
De sua parte, o Movimento contra o Racismo e pela Amizade entre os Povos (MRAP) divulgou texto em que condena as frases provocadoras de Redeker mas considera ‘inadmissíveis as ameaças de morte’.
Desenhos eróticos
Mas pior que a censura exercida pela lei e as ameaças dos fundamentalistas é a autocensura que tomou conta do mundo cultural europeu. Em Berlim, a ópera Idomenéia, de Mozart, foi retirada de cartaz por temor de represálias contra o teatro. Tudo porque nessa montagem há uma cena em que aparecem Maomé e Jesus com as cabeças cortadas.
Até a chanceler alemã Angela Merkel interveio no debate para denunciar ‘blocagens mentais inúteis no campo da liberdade de expressão’.
Mas em matéria de autocensura, o cúmulo foi a reação da Whitechapel Art Gallery, de Londres, que suspendeu uma exposição do artista surrealista Hans Bellmer (1902-1975) por julgar que seus desenhos eróticos poderiam chocar a população muçulmana do bairro popular onde a galeria está localizada.
Alguém falou em liberdade de expressão?
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Jornalista