Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Liberdade de imprensa e defesa do emprego

No dia 21 de junho, Cícero Belmar, editor do Jornal do Commercio no Recife, perdeu o emprego. Razão: autorizou a publicação de texto sobre a libertação de 1.200 trabalhadores, que exerciam trabalho escravo nas terras de Eduardo Queiroz Monteiro, dono de outro jornal, o Folha de Pernambuco. E no dia 30 de junho, o mais grave. José Cândido de Amorim Filho, radialista na Rádio Alternativa em Carpina, perdeu a vida. Razão: denunciava a prática de nepotismo, a doação dos melhores empregos públicos aos parentes do prefeito de Carpina. Dezoito tiros.

O mal, que chamamos de liberdade de imprensa em Pernambuco, vem de mais longe. Com renovações as mais livres, todos os dias.

Para não ir muito longe, vamos a um marco, ao marco zero da cidade do Recife. No ano da graça de 1999 o artista Francisco Brennand esculpiu e pôs na entrada do porto da cidade uma coluna cilíndrica, firme e subida. Trinta e dois metros de argila e bronze, uma flor alta, segundo Brennand. Para quê? Comentou-se na cidade que a mulher do prefeito, uma senhora evangélica, vira na coluna aspectos pouco recomendáveis aos bons costumes. Porque ela, a obra, mais se parecia a um falo, acrescentaram alguns loucos pouco amantes da vida. Daí que o colunista social do Jornal do Commercio escreveu uma pequena nota, sem citar nomes de autoridades, porque louco não era, chamando a atenção para a censura que estaria havendo à obra de Brennand. Para quê?

O emprego e a vida

Em 9 de agosto de 1999, o prefeito da cidade invadiu o Jornal do Commercio absolutamente fora de si. Escrevemos invadir, mas devemos corrigir. Autoridades não invadem um jornal no Recife, apenas entram sem convite. Ou melhor, autoridades no Recife sempre estão mui bem convidadas. O fato é que o atual deputado federal pelo PFL passou por cima de porteiro e portaria, com o paletó aberto e revólver à mostra na cintura, porque homem é homem. Subiu, dirigiu-se ao chefe de redação, e mandou vir à sua presença o colunista social Orismar Rodrigues. Autoridade é autoridade. E lhe perguntou, com o revólver exibido:

– O senhor quer viver mais alguns anos? Quer?! Então tome cuidado, preste muita atenção ao que escreve.

As testemunhas desse ‘diálogo’ dizem que a fala não se deu nesse tom, acreditem, civilizado. Que o colunista foi tratado pelo vocativo baby. Que o prefeito gritava, irado e possesso a ponto de matar. Porque ali estava um homem disposto a reparar a honra da sua, dele, família.

O fato, o falo, se estendeu, para maior desespero do prefeito, que à época era candidato a novo mandato e que perdeu em razão desse falho. Todos os jornais do Recife noticiaram a ameaça ao jornalista, todos, educada, censurada e elipticamente. Bem, mal, todos, menos o Jornal do Commercio, a vítima. O colunista, por sua vez, sequer prestou queixa à polícia. Porque precisava do emprego e da vida por mais alguns anos.

Interesse da autoridade

Acontece com os jornais de Pernambuco um fenômeno que certamente é universal: as melhores reportagens, as melhores notícias, os melhores textos se transformam em autênticos palavrões, porque não são publicáveis. Mas aqui em Pernambuco, valha-nos a redundância, temos uma censura autenticamente pernambucana. A saber, neste índex censório:

1) Não se fala mal de amigo do dono do jornal. Mas, à Pernambuco, falar mal do próprio amigo pode, é até prova de bom caráter. ‘Quanta independência!’, comenta-se.

2) Se alguma vez, alguém, inadvertidamente, coitado, falar mal de um desses amigos do amigo do dono, perde não só o emprego, como é comum em várias partes do Brasil. Em Pernambuco, pernambucanamente, perde o direito ao uso do próprio nome. O macarthismo é real, é cotidiano, é recente.

3) Os jornalistas, de modo geral, são muito ferozes, destemidos, fora do seu ofício, fora do seu batente. Isto é universal. Mas em Pernambuco a qualidade moral da coragem confunde-se com a macheza. Se alguém é macho para falar mais alto longe da redação, ótimo, pode sobreviver na maior vileza.

4) O interesse público acima de tudo. E o interesse público, como em outros lugares, é o interesse da autoridade, do rico, do amigo do rico, do poderoso ocasional. Mas tamanha é a sombra do poder, que a tudo invade em Pernambuco, que às vezes, numa tradução arretada, respeita-se a sombra do poderoso errado. ‘Não me avisaram’, dizem os surpreendidos editores.

‘Somos responsáveis’

Entre os fatos que seriam noticiados no melhor dos jornais pernambucanos destacaríamos, em ordem cronológica:

1) No tempo das máquinas de datilografia, a diretora de redação do Diário de Pernambuco fiscalizava, ostensivamente, o texto que estava sendo escrito por redatores e repórteres. Antes mesmo de ser apresentado a ela, para o imprima-se. No ato, na própria máquina de escrever, enquanto o repórter batia, intimidado, as teclas. As laudas, entremeadas por carbono, eram levantadas, mais despudoradamente que saias de mocinha virgem em praça pública. Nenhuma voz máscula, em riste, se levantava contra semelhante abordagem. Quem era louco? A feitora, melhor, a diretora, estava no uso das suas prerrogativas.

2) Depois da demissão de um colega, que chamara a atenção para o desrespeito a direitos trabalhistas, os repórteres da Folha de Pernambuco iniciaram, mui timidamente, alguma coisa parecida a uma movimentação de protesto, de solidariedade… Para quê? O diretor de redação (sempre ele) desceu até os malucos e gritou, em alto, imperial e bom som: ‘Vocês são meus. Ouviram? Vocês são meus! Quem estiver insatisfeito, levante-se e vá embora’. Como prova de propriedade, com muita propriedade ninguém falou. Dizem até que houve quem demorou a ir ao banheiro. Para evitar qualquer equívoco.

3) No recente protesto do sindicato dos jornalistas contra a demissão de Cícero Belmar, o diretor de redação (sempre ele!) comentou aos bons e solícitos ouvidos de sempre: ‘Eu não entendo por que vieram protestar na porta do Jornal do Commercio. Deviam ir protestar nos outros jornais. Nós até publicamos a notícia!’. Ninguém lhe fez ver que exatamente por isso o editor fora demitido. Ninguém é louco.

Ninguém é louco de dizer que em Pernambuco não há liberdade de expressão. Todos os pernambucanos pensam o que der na telha, quem quer escreve, do vivido ao imaginado, com a mais absoluta liberdade. A única e pequenina restrição é que nada se publica do que tão livremente é pensado. Porque nenhum editor ou diretor é louco. ‘Somos responsáveis’, dizem-se. Tal responsabilidade, de publicar o publicável, de não publicar o pensamento livre, traz conseqüências danosas, terríveis. Afeta a própria inteligência coletiva, que deveria se ver e ser estimulada a pensar em meios que se dirigem ao público.

Não publiquem

Gera-se a mediocridade coletiva, a plena satisfação com o abaixo do razoável. Gera-se até mesmo a elevação do baixo a categorias ontológicas. Gera-se a comédia, diríamos, se isto não encerrasse pequenas tragédias individuais. De um ponto de vista particular, da categoria dos jornalistas, mais que o medíocre, gera-se o texto uniforme, em escala e produção industrial. Porque não há nem pode haver qualidade e riqueza de pensamento onde prospera o medo. É um equívoco a crença de que o pensamento bom, criativo, é uma condição de mentes privilegiadas, geniais. Não. O pensamento, livre em seu nascedouro, só quer uma coisa para crescer e ser digno do nome: não ter medo, vencer o medo, ir às últimas na sua expressão. Ora.

Numa terra de três jornais, de vigilância cerrada, feudal, sobre o que escreve ou tenta escrever a massa de jornalistas, ora, sempre se diz, com suave perfídia a qualquer leve rebeldia, que ‘há centenas de jornalistas prontos a ganhar menos de mil reais’. Ora. Se ‘a primeira liberdade da imprensa consiste em que ela não seja um ofício’, como acentuava Marx, o que dizer quando existe uma desproporção brutal entre o número dos que desejam ter esse ofício e o número de proprietários da nobre função? Com a palavra o presidente do Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco, que assim se referiu à grande massa de colegas de Belmar que não vieram participar do protesto contra a demissão de um semelhante:

‘Entendo por que os jornalistas da redação não estão presentes. É muita pressão. É uma ameaça permanente de perda do emprego. Sei que de coração todos eles são solidários à causa, mas a sobrevivência fala mais alto.’

Ou seja, em Pernambuco, a liberdade de imprensa termina por se confundir com a defesa do emprego. Que é pouco, mal remunerado e medíocre. E que se perde, ainda assim. Em silêncio, ‘por favor não gritem, por favor não citem nomes’. O que afinal, quer dizer por favor não pensem, por favor não escrevam, mas se escreverem, pelo amor de Deus, não publiquem. Liberdade de imprensa para quê? Ninguém é louco.

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Jornalista