Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Liberdade de imprensa, essas palavras…

Semana passada comemorou-se o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, em 3 de maio, decretado pela ONU em 1993. A data nos anima, como categoria profissional e cidadãos, a exaltá-la como liberdade imprescindível para exercermos nossa atividade profissional, bem como para a manutenção da própria democracia. Este artigo tem como objetivo precípuo fazer uma breve reflexão generalista sobre os fundamentos dessa liberdade, a partir de três dimensões interdependentes: semântica, ética e política. O desafio será o de realizar um pensamento crítico para além de qualquer dimensão corporativista.

É comum o termo ‘liberdade de imprensa’ ser sinônimo de ‘liberdade de expressão’, ‘de informação’, ou ‘de opinião’. O que não implica desvincular a relação simbiótica entre elas. Os nossos constituintes de 1988 fizeram questão de eleger essas liberdades à categoria de direitos individuais e coletivos, num mesmo artigo, o 5º, incisos IV, IX e XIV. Como explica o professor Venício A. de Lima em artigo neste Observatório (‘Thomas Paine e a liberdade de imprensa‘, 16/6/2009), a ‘liberdade de imprensa passou a ser usada quando a Revolução inglesa de 1688 aboliu a exigência de autorização prévia do imprimatur do governo para a impressão de textos’.

Ou seja, a liberdade de imprimir nada tem a ver com o conteúdo impresso, isto é, com a liberdade que temos, ou deveríamos ter, nos tempos atuais, de publicar informações de relevância pública, sem nenhum embaraço, a fim de que o cidadão tenha assegurado o seu direito de ser bem informado sobre tudo aquilo que afete sua vida. De forma mais simples, pela explicação de Jairo Cardoso, liberdade de expressão é poder dizer o que se pensa; de informação é poder saber o que os outros pensam; e liberdade de imprensa é poder difundir o pensamento de todos.

Falar, escrever e imprimir livremente

O que se quer extrair, criticamente, dessa discussão semântica do termo, já se imbricando para a dimensão ética deste artigo, é que, a partir de um ‘erro de hermenêutica’ da consagrada frase de Thomas Jefferson – ‘fosse deixado a mim decidir se deveria ter um governo sem jornais ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir este último’ – tem-se justificado, falaciosamente, como absoluta, a liberdade de imprensa. Explico: nada é absoluto em um Estado Democrático de Direito. Caso contrário, tudo e todos ficaríamos à mercê do caos das éticas absolutistas/particularistas entre governantes e governados.

Contextualizando essa assertiva para o âmbito jornalístico, a liberdade de imprensa não pode ser absolutamente invocada para que maus profissionais destruam a honra de cidadãos em nome de uma sofismática concepção de liberdade absoluta da imprensa. Explico, novamente: se é verdade que nossa Constituição garante a liberdade de manifestação de pensamento (art. 220), essa mesma liberdade tem como contrapartida a responsabilidade pelo pensamento livremente manifestado. É o que proclama a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, desde 1789: ‘A livre emissão das opiniões e dos pareceres é um dos direitos mais preciosos do homem; portanto, todo e qualquer cidadão pode falar, escrever e imprimir livremente, salvo nos casos em que o abuso desta liberdade implique uma responsabilidade determinada pela lei’; e, também, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, em seu famoso Art. 19.

O abuso e a censura

Em síntese cartesiana, a liberdade de imprensa não é absoluta. E ela pode e deve ser mitigada para que cidadãos honestos exerçam seu imaculado direito de resposta ao terem suas honras maculadas por maus trabalhadores e empresários do campo jornalístico. Isto é, se essa contrapartida sobre a responsabilidade das notícias publicadas é verdadeira, é fato também que muitas vezes não é acompanhada de uma práxis ética jornalística. Com efeito, liberdade de expressão que atente contra a honra de cidadãos nunca foi liberdade de expressão. É infração constitucional e crime regulado pelo Direito Penal. Sempre é bom abusar da citação dos casos José Cleves (‘Crime contra a liberdade de expressão‘) e da Escola Base, como exemplos emblemáticos do que acontece quando impera a concepção absolutista do termo ‘liberdade de imprensa’.

Aliás, em relação ao nosso sagrado direito de resposta, após a revogação total da Lei de Imprensa (é consenso entre muitos estudiosos e especialistas do Direito Constitucional que a Lei 5250/67 poderia ter sido revogada em parte, retirando-se apenas os artigos obsoletos) pelo STF, em 2009, ficamos todos órfãos de uma norma processual específica.

Há um vácuo ético e jurídico quanto ao direito de retificação. E antes que alguém se sinta ‘ofendido,’ por esta articulista fazer apologia a um ‘entulho da ditadura militar’, permito-me lembrar-lhes que Karl Marx, em seu livro Liberdade de Imprensa, já defendia, há mais de um século, a funcionalidade de uma lei de imprensa, diferenciando-a de uma lei de censura. Segundo o jornalista-filósofo, numa lei da imprensa, a liberdade pune; numa lei da censura, a liberdade é punida. E o próprio Marx concluiu: a lei da imprensa pune o abuso da liberdade; e a lei da censura pune a liberdade como se fosse um abuso.

PNDH 3 tachado de ‘excrescência’

Nesses termos, é imperativo categórico questionar como se daria essa responsabilização pelos abusos em nome de uma liberdade de imprensa absoluta. E é nesse momento que caminhamos para a dimensão política do tema central deste artigo. Defendo mecanismos de controle social da mídia, no sentido de accountability, conceito que representa a responsabilidade do poder público, ou dos agentes públicos, de prestar contas de ações implementadas, ou não, em nome do interesse dos cidadãos, como define o professor-pesquisador Venício A. de Lima.

Mas também busco o termo ‘mecanismos de responsabilização da mídia’, do teórico Jean Claude-Bertrand – cujo termo implicaria quaisquer meios de melhorar os serviços de mídia ao público, totalmente independentes do governo – para embasar minha ideia sobre a dimensão política de alguns desses métodos de controle social – conselhos de redação, conselhos de jornalistas, conselhos municipais, estaduais e nacional de Comunicação, comissões de ética e ouvidorias nos sindicatos dos jornalistas, observatórios de mediacriticism, campanha ‘Quem financia a Baixaria é Contra a Cidadania’ etc. – para minimizar os abusos no exercício da liberdade de manifestação em nome de uma equivocada liberdade absoluta.

Entretanto, por paroxismo à premissa de Bertrand, é o próprio governo federal brasileiro que tem protagonizado, nos últimos dois meses, o agendamento político sobre esses possíveis mecanismos de responsabilização, por meio do seu 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), que prevê o controle social da mídia. E, por isso, essa proposta lulista tem sido demonizada pelo empresariado da mídia, a começar pela atual presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Judith Brito, também diretora-superintendente do grupo Folha, que tachou, categoricamente, a proposta do governo de ‘excrescência’.

Os donos de jornais, emissoras de rádio e TV, revistas e outros meios têm usado e abusado de uma inexistente ‘liberdade de imprensa absoluta’, como ‘água benta’, para se protegerem das ‘investidas do atual governo contra a democracia e contra a liberdade de expressão no país’, como foi propalado durante o 1º Fórum ‘Democracia e Liberdade de Expressão’, em São Paulo, em março passado.

Direitos e obrigações

Neste trecho do presente artigo, entendo ser importante firmar minha posição política: não pertenço nem milito em partido político. O que não implica ser apolítica, mas apartidária, ou melhor, um sujeito político, conforme a concepção da filósofa Hanna Arendt em A Condição Humana: política, como ação e como processo, dirigida à conquista da liberdade e da emancipação dos sujeitos políticos. Esclarecido meu desatrelamento político-partidário, sinto-me à vontade para finalizar meus argumentos em defesa de um debate crítico e amplo, em todos os espaços e fóruns (sindicatos, universidades, redações, grupos de discussão etc.) sobre a urgente necessidade de se ter um controle social da mídia, como uma das formas de se limitar os abusos da liberdade de imprensa.

Interessante lembrar que, poucos meses antes de o governo federal apresentar o PNDH 3, setores da sociedade civil defenderam, durante a 1ª Conferência Nacional de Comunicação Social, em Brasília, em dezembro de 2009, proposta de criação de mecanismos de controle social da mídia, violentamente rechaçada pelos setores empresariais e, nesse evento, o governo, na pessoa do ministro das Comunicações, Hélio Costa, omitiu-se do debate…

Ora, aonde se quer chegar após a apresentação das três dimensões interdependentes sobre liberdade de imprensa? O cientista político José Murilo de Carvalho nos ajuda a pensar o caminho: ‘Se há algo importante a fazer, em termos de consolidação democrática, é reforçar a organização da sociedade para democratizar o poder. A organização da sociedade não precisa e não deve ser feita contra o Estado em si. Ela deve ser feita contra o Estado clientelista, corporativo, colonizado.’

E o controle social da mídia é mais do que uma possibilidade de se democratizar o poder da liberdade de imprensa. Essas três palavras exigem respeito, mas a democracia que elas garantem não é conivente com o abuso e define direitos e obrigações.

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Jornalista, professora de Ética e Deontologia do Jornalismo, diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais, diretora do Fórum Mineiro dos Professores de Jornalismo e membro do Fórum Mineiro e Nacional pela Reforma Política