Um observador internacional que, desconhecendo a nossa realidade, assistisse à III Conferência Legislativa Sobre a Liberdade de Imprensa, não só acreditaria que a grande mídia tem sido obrigada a pagar descabidas indenizações milionárias, como também está submetida à censura prévia e a restrições da ‘liberdade de expressão comercial’ (leia-se publicidade).
Esta é a posição dos principais palestrantes da conferência, promovida pela Associação Nacional de Jornais e pela Unesco, realizada na Câmara dos Deputados, no último dia 29 de abril: os empresários dos maiores grupos de mídia em operação no país – Globo, Estado de S.Paulo, Folha e Abril. Essa é também a percepção da OAB, da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e de alguns parlamentares. Predominou a opinião de que a imprensa não deve estar submetida a qualquer tipo de legislação e que a auto-regulação e a livre concorrência no mercado constituem a única forma de se evitar as distorções e os abusos.
O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), todavia, foi além. Ele propôs que agentes públicos – no exercício de mandatos eletivos, concursados e também líderes religiosos e classistas – sejam proibidos de iniciar procedimentos judiciais contra jornalistas, inclusive em casos de calúnia, injúria e difamação. Ele defendeu que aqueles que exercem a profissão de jornalista se tornem legalmente inimputáveis. Vista de outro ângulo, a proposta do nobre deputado – inédita em todo o planeta – significa que os agentes públicos passariam a gozar de uma cidadania-parcial, de vez que impedidos de exercer o direito fundamental de defesa nos crimes contra a honra.
Disputa pelo poder político
E mais: para o deputado, quem se julgar ofendido pela cobertura jornalística não deve ter o direito de resposta. Ao contrário, deveria convocar uma entrevista coletiva e disputar espaço no noticiário da grande mídia para se defender (parece uma brincadeira, mas não é).
O nosso observador internacional haveria de notar também a ausência de jornalistas, observadores da mídia, pesquisadores e representantes diretos da sociedade civil organizada na conferência. Para a ANJ e para a Unesco, subentende-se, a participação deles não é relevante. Eles não foram convidados a expressar sua posição sobre a liberdade de imprensa.
Na verdade, a III Conferência Legislativa Sobre a Liberdade de Imprensa é um exemplo emblemático dos equívocos que têm orientado a discussão sobre o tema, comandada pela grande mídia.
Nunca será demais insistir que o conceito de liberdade de imprensa tem uma história que começa com a liberdade individual de expressão e o direito de imprimir na Inglaterra do século XVII, muito antes de existirem jornais como os de hoje.
Ao longo do tempo, a questão central que define o significado da liberdade de imprensa tem sido exatamente quem ameaça a sua existência. A identificação desse quem faz parte da construção histórica do conceito e, considerando a importância que a mídia adquiriu, constitui elemento determinante da própria disputa pelo poder político nas democracias contemporâneas.
Direito soberano
Inicialmente, a ameaça vinha do Estado absoluto, onde o poder do monarca era considerado de origem divina. Religião e poder temporal se confundiam. Com o passar dos séculos e o surgimento da democracia, o poder absoluto foi sendo substituído pelo Estado democrático de Direito. Mesmo assim, o poder do Estado ‘autoritário’ continuava a ser a grande ameaça à liberdade de imprensa. A imprensa, no entanto, acabou por se transformar em mídia – um grande negócio. A partir daí, a origem da ameaça à liberdade de imprensa deixou de ser somente o Estado.
Os grandes jornais passaram a fazer parte de conglomerados empresariais multimídia com amplos interesses econômicos e políticos e eles próprios se constituíram em atores importantes na disputa pelo poder nas sociedades democráticas. A ameaça à liberdade de expressão passou a vir não somente do Estado, mas também desses grandes conglomerados.
Neste novo contexto, vale lembrar a célebre decisão da Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos em 1969. Apesar de referida apenas à radiodifusão, a interpretação do significado da Primeira Emenda da Constituição norte-americana é clara: ‘It is the right of the viewers and listeners, not the right of the broadcasters, which is paramount.’ (‘É o direito dos espectadores e ouvintes, não o direito dos radiodifusores, que é soberano‘; 395 U. S. 367; June 9, 1969).
Posição do cidadão
Nas democracias contemporâneas, portanto, a liberdade de imprensa se justifica pela obediência aos princípios da pluralidade e da diversidade, tanto no jornalismo como no entretenimento. São estes princípios que vão permitir ao cidadão acesso à informação equilibrada, que por sua vez é a garantia da formação de uma opinião pública independente capaz de legitimar o ‘governo por consentimento’ (G. Sartori).
No Brasil, opera-se uma inversão conceitual que tem substituído o cidadão pelas empresas de mídia. Estas deveriam ser o instrumento da liberdade de expressão individual de cada cidadão, e não o meio e o fim da liberdade de imprensa.
Precisamos dar um passo à frente e discutir o papel da mídia em termos do ‘direito à comunicação’ de cada cidadão. Este é um direito de ‘mão dupla’ que supera conceitualmente a unidirecionalidade do conceito de direito à informação. E é um direito universal do Homem, como, por exemplo, os direitos à saúde ou à educação.
Dessa nova perspectiva, talvez na próxima celebração do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa (3/05) já possam estar corrigidas as rotineiras distorções no debate que a grande mídia tem promovido entre nós e o cidadão – leitor, ouvinte ou telespectador – volte a ocupar a posição que é sua, de único sujeito do direito à comunicação nas democracias.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)