Um dos meus anseios de chegar ao infinito é a esperança de que, ao menos de lá, as paralelas se encontrem! (Dom Hélder Câmara)
Quando, azuladíssima e morna, caía a noite de 27 de agosto, encontrei finalmente o carrinho popular 98/99. Naquele momento, como aviso, uma brisa que me pareceu de cravos acariciou a rua-serpente do Pacaembu. Respirei em triste êxtase e coloquei-me no rumo de casa. Ainda antes da Avenida Sumaré, pressionei o botão vermelho do rádio. Pretendia compreender pela voz dos comentaristas o que não compreendera como torcedor de arquibancada. Como o esquadrão mosqueteiro pudera cair novamente em seus domínios?
De repente, já nos pés do Viaduto Antárctica, um repórter plantonista interrompeu a transmissão de Palmeiras e Ponte Preta com uma notícia de última hora. Morrera o arcebispo de Mariana, Dom Luciano Mendes de Almeida…
Missão para os neurologistas: explicar como um módulo de 15 segundos de informação pode resgatar, com incrível rapidez, tantos arquivos armazenados nos empoeirados porões da memória.
Estranhamente, não imaginei a agonia do enfermo ou a placidez do corpo no esquife. Transportei-me à segunda metade da década de 1970, quando o afável sacerdote foi nomeado auxiliar de Dom Paulo Evaristo Arns. No Belém, na chamada média-periferia da Zona Leste da capital paulista, Dom Luciano iniciou um notável trabalho de socorro aos necessitados, inclusão social e conscientização dos jovens. Eu e muitos amigos de infância nos pusemos a participar de algumas daquelas atividades. Particularmente, atuávamos nas obras vicentinas, na paróquia de Santa Isabel.
Exercícios educativos
Um dia, assustei-me. Como secretário da conferência mirim, teria de ler a ata da reunião anterior diante do bispo. E mais: seria o encarregado de comentar o texto do Evangelho. Baita tremedeira… Todo aquele receio, entretanto, dissipou-se quando fui apresentado ao ilustre visitante. Simples no trajar, sorriso amigo e olhos generosos, em nada se parecia com aqueles prelados inquisidores que povoavam minha imaginação.
Naquela noite, Dom Luciano me disse do poder da comunicação e da enorme responsabilidade social de quem escreve. Elogiou discretamente minha ata e pediu-me que executasse aquele trabalho sempre com rigor e respeito à verdade. Ministrava-me assim uma primeira e valiosa lição de jornalismo. Nessas ocasiões festivas, o bispo costumava evitar exaltações. Tratava geralmente de ética e do compromisso cristão de servir.
Depois de um desses encontros na comunidade, Dom Luciano e meu pai, o velho Waltão, trocaram idéias por alguns minutos. Logo, fui chamado a participar da conversa. O simpático senhor indagou-me sobre o interesse numa experiência de formação religiosa. Passei uma semana matutando sobre o assunto, mas havia tantas meninas de olhos faiscantes no bairro… Instaurou-se uma renhida competição-interação entre carne e espírito.
O meu ‘não’ foi muito um sim. Acreditei que o ensinamento de carpinteiro de Nazaré poderia ser vivido todos os dias, mesmo longe das batinas e das suntuosas catedrais. Pelo que entendia das preleções de Dom Luciano, era legítima a busca de alguma santidade, mas nunca com o objetivo de distinção. Os homens todos podiam ser santos anônimos, invisíveis, construindo suas virtudes no cotidiano, em pequenas iniciativas, em modestos projetos.
Anos depois, decidi cursar Jornalismo na PUC-SP. Ali, segundo o bispo, os bons valores eram autenticamente praticados. A realidade mostrou que se tratava de uma percepção correta dos exercícios educativos do caldeirão de Perdizes.
Veja e CNBB
Logo depois de formado, incorporei-me à equipe de repórteres da Veja. Uma de minhas principais atribuições era justamente cobrir a área de religião. Que dura prova… À época, muitos dos bispos progressistas negavam-se a conceder entrevistas para o pessoal do semanário. E até tinham suas razões: o que não era inventado freqüentemente era distorcido.
Repórteres da Veja encontravam, portanto, enormes dificuldades para coletar informações nos concorridos encontros anuais da CNBB, no convento de Itaici, em Indaiatuba (SP). Sempre disponível, no entanto, Dom Luciano atendia a todos. Ainda que ponderado e suave, manifestava-se com espantosa franqueza sobre os problemas brasileiros, especialmente sobre as injustiças sociais. Jamais negava a comunicação franca e objetiva, mesmo quando procurado por profissionais que serviam como detratores da doutrina social da Igreja.
Noutras ocasiões, entretanto, Dom Luciano escondia-se da imprensa. No Estado de S.Paulo, por exemplo, encontrei enorme dificuldade para produzir uma reportagem sobre sua fabulosa atividade caritativa. Avesso às estratégias de marketing pessoal, o bispo ocultava seu sacrifício diário. Como detetive, acompanhei suas aventuras. Numa madrugada, em sua casa, acolheu um sem-teto e lhe deu de comer. Noutra, cortou os cabelos e unhas de um catador de material reciclável. Noutra madrugada, foi consolar uma senhora enferma na remota-periferia. Dormia pouco, cerca de quatro horas por noite, mas jamais permitia propaganda de sua beatitude.
Ainda no Estadão, recordo-me de ser destacado para cobrir um encontro de teólogos progressistas em Domingos Martins (ES). Considerado representante de um jornal ‘burguês’ e ‘reacionário’, fui impedido de entrevistar qualquer um dos participantes do evento. ‘Democraticamente’, decidiu-se que ninguém poderia manter contato com o ‘repórter da imprensa de direita’.
Ironicamente, isso ocorria numa época de profunda transformação na linha editorial do Estadão, à época sadiamente oxigenado pelas reformas introduzidas pelo jornalista Augusto Nunes. Buscava-se executar um trabalho honesto, com o máximo de isenção possível.
Numa tarde, recordo-me de manter a mão estendida por uns seis ou sete segundos – uma eternidade –, aguardando o cumprimento do admirável Leonardo Boff. Em vão. Recebi apenas o olhar severo. Minutos depois, fui informado de que deveria deixar a área pública do local de encontros.
No dia seguinte, no estacionamento, ouvi gratificado a voz discordante, mas conciliatória, de Dom Luciano, em visita aos intelectuais católicos. Segundo ele, os que denunciavam sofrer censura jamais poderiam censurar. Os que reclamavam do silêncio imposto pela Congregação para a Doutrina da Fé jamais deveriam recolher-se ao silêncio vingativo. Para o esclarecido sacerdote, a comunicação social exigia respeito e confiança, tanto dos agentes de transformação quanto dos produtores da notícia.
Ainda no Estadão, tive de redigir – para a gaveta – uma espécie de perfil póstumo de Dom Luciano, que se ferira gravemente em um terrível acidente automobilístico. Passaram-se as semanas, e tecidos e ossos quiseram se reconstruir. Um colega de redação arriscou dizer que a modesta santidade lhe servira de escudo e remédio.
As últimas lições
Durante anos, Dom Luciano experimentou uma espécie de exílio. Ainda assim, no entanto, manteve-se fiel a seus princípios. Sempre recebeu fraternalmente os jornalistas que o procuravam. Dissertava com maestria sobre a complexa relação entre o mundo em metamorfose e os dogmas religiosos. Manifestava sinceramente sua opinião, sem nunca confrontar a Santa Sé. Eclesiologicamente, procurava a ‘unidade’ e estimulava a ‘multiplicidade’, seguindo as orientações que o Cardeal Ratzinger – hoje Papa Bento XVI – dera aos bispos brasileiros, num curso no Rio de Janeiro, em 1990. Pacientemente, buscava o mesmo que Dom Hélder Câmara: traçar roteiros nos quais as ‘paralelas’ se encontrassem.
Talentoso desenhista, excelente articulista e conferencista, Dom Luciano deixa enorme lacuna numa Igreja que parece ter desaprendido o ofício de comunicar. Que seu exemplo seja, portanto, preservado e difundido. Que tenhamos coragem de informar sem arrogância. Que sejamos ousados para tentar, também à sombra do tempo breve, provar de sua modesta santidade.
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Jornalista