Volta à pauta o tema da questão de a leitura de Monteiro Lobato (1882-1948) ser ou não ser uma ‘perigosa propaganda do racismo’ e, desta vez, com o reforço do texto do professor Muniz Sodré, ao falar do ‘racismo afetuoso’, criticando a postura do ministro Fernando Haddad (ver ‘Monteiro Lobato vai para o trono?‘). O curioso é que as expressões de que sempre se servem os acusadores para mostrar o caráter ofensivo aos ‘não-brancos’, em regra, estão no discurso direto, na boca de uma das personagens, a Emília, quando se dirige à Tia Nastácia. Não vou alinhar argumentos que foram deduzidos em outra oportunidade (ver ‘Datas redondas, Gandhi e Lobato‘), mas vou prender-me, sobretudo, ao texto do professor Muniz Sodré e aos comentários que aportaram, estes, efetivamente, mais virulentos.
Deixo bem claro que costumo ler os textos do professor Muniz Sodré e, em muitos pontos, manifesto concordância. Mas não é o caso deste, e é por conta disto mesmo que me sinto no dever de manifestar minha discordância num artigo, e não no espaço reduzido dos comentários. O texto do jornalista Júlio Ottoboni defende Lobato a partir do problema do perigo de se reduzir a sua obra a mera questão racial, contextualizando-a historicamente e recordando episódios como o veto à sua entrada na Academia Brasileira de Letras e o seu apresamento pelo Estado Novo (ver ‘Monteiro Lobato não precisa de buzinadas‘. Meu texto vai no sentido de aproximar mais diretamente os polemistas da obra em si mesma.
Como os personagens veem a Tia Nastácia?
Efetivamente, não é exatamente elogioso a quem quer que seja ser chamado ‘beiçudo’, ‘pretura’ e outros que tais. Mas também não é de ser esquecido que: (1) os adjetivos utilizados aparecem, sempre, num diálogo fictício; (2) os demais personagens, caso demos de barato esta circunstância, são respeitosos com a cozinheira – mesmo D. Benta somente vem a chamá-la de ‘analfabeta’ na Aritmética da Emília, sendo, em todos os outros volumes (e são dezoito, ao todo), extremamente cordial, apesar de patroa; (3) toda vez em que Lobato assume o discurso do narrador, é elogioso para com a negra. Tomemos, especificamente, a obra que rendeu ensejo a toda a polêmica em especial, Caçadas de Pedrinho, na edição da Brasiliense de 1960, em volume que trazia junto Hans Staden: ‘mais corajosa, a negra aproximou-se’ (p. 18), ‘a boa negra’ (p. 59), ‘a boa criatura'(p. 114). Quando não exprime carinho, exprime piedade, não sendo ela mais medrosa ou desajeitada do que sua patroa, D. Benta. Quanto a Emília, que, no conjunto, é uma personagem simpática apesar de politicamente incorreta, eis como ele se refere, quando assume a posição de narrador (no mesmo livro): ‘a terrível bonequinha’ (p. 8 e 27), ‘diabinha’ (p. 103).
E como é que os personagens, mesmo Emília, veem a Tia Nastácia? Em O Minotauro, continuação de O Pica-Pau Amarelo, vão todos à Grécia Antiga para resgatá-la das garras do filho de Pasífae com o touro de Minos. Claro que poderia vir o contra-argumento de que o motivo seria o utilitarismo de não perder a quituteira.
O resgate de tia Nastácia
Mas – recordando, sempre, que estamos diante da ficção, universo em que o autor pode moldar o mundo com uma liberdade, sem blasfêmia, semelhante à de Deus –, vejamos qual a percepção das personagens acerca do dever de resgatá-la (a referência é à edição de 1960):
‘A pobre tia Nastácia, que se distraíra nas cozinhas do palácio com o assamento de mil faisões, perdeu-se no tumulto. Fora atropelada, devorada ou aprisionada pelos monstros? Ninguém sabia.
‘Só depois do desastre é que Dona Benta e os meninos puderam ver o quanto a estimavam. Que choradeira!’ (p. 1).
‘Fique sossegada, vovó. Apesar daquilo lá ser um viveiro de hidras e heróis tebanos, eu aposto em mim mesmo. Hei de ir, ver e vencer – e trazer tia Nastácia, ainda que seja de rastos. A senhora não me conhece, vovó….’
‘Dona Benta, que voltara com Aspásia, fez a apresentação da preta:
‘Está aqui a minha boa amiga extraviada nos fundões da velha Hélade. Pedrinho jurou que a traria e trouxe-a. É um danado esse meu neto’ (p. 251).
‘Os europeus só roncam diante dos fracos’
Muito bem. O que dizia Monteiro Lobato a respeito da escravatura e do colonialismo? Afinal, toda esta movimentação para declarar a sua obra perniciosa – algo que não deixa de guardar uma forte analogia com a campanha que J. Edgar Hoover fez, através de políticos notoriamente reacionários, como Joseph McCarthy e Richard Nixon, contra Chaplin e sua obra cinematográfica – está a partir do pressuposto de que o autor paulista, nosso primeiro autor voltado à literatura infantil, teria estado a serviço de uma propaganda das ideologias racistas do início do século 20 e deveria, para não incidir em inconsequência, trazê-las e comentá-las, nem que fosse para dizer que elas, no seu ver, não diriam o que a literalidade delas dizem:
‘Nem queiram saber, meus filhos, o que foi o célebre `tráfico de escravos africanos´… Virou a maior tragédia da História. A crueldade dos brancos, a cupidez dos civilizados excedeu a tudo quanto se possa imaginar. Pegar negros na África para exportá-los para a América tornou-se o grande negócio dos tempos. […]
A tragédia foi longa mas passou. Os países da América foram libertando os escravos, primeiro este, depois aquele. A Argentina libertou-os em 1813 – foi um dos primeiros e, por isso, está agora gozando a recompensa. O México libertou-os em 1829. Os Estados Unidos, em 1863, e o Brasil em 1888…
`Por último, heim? Que vergonha para nós!´ – comentou o menino.
Sim. Fomos o último povo no mundo a libertar os escravos. Realmente, essa demora em nada nos honra…’ [Geografia de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1960, p. 213-5].
‘Os europeus só roncam diante dos fracos. Se o povo é forte, como os americanos ou os japoneses, eles desconversam’ [idem, p. 217].
‘Seu ódio aos negros não se deduz de seu texto ficcional’
A passagem da carta de Lobato a Godofredo Rangel que é referida pelo professor Sodré para comprovar as convicções racistas do escritor sob comentário não prova que sua obra infantil seja propaganda racista, assim como o fato de alguém ter uma opção homossexual não faz, necessariamente, prova de que ele tenha molestado sexualmente uma criança do mesmo sexo, ou o de alguém ser francamente homofóbico não faz, necessariamente, prova de que tivesse participado de um grupo que tenha espancado até a morte um homossexual, ou de alguém ser simpatizante de MST não faz com que tenha participado de ocupação da fazenda X ou Y, ou o de alguém antipatizar o MST não faz com que tenha participado de eventos como o de Eldorado dos Carajás. Prova da convicção não é prova do fato relacionado à convicção. Com efeito, o professor Muniz Sodré refere:
‘Monteiro Lobato era um racista confesso, seu ódio aos negros não é nada que se deduza por interpretação de seu texto ficcional. Mas quase todo o mundo leitor sabe disso. É lamentável fingir inocência ou alegar que o racismo brasileiro é diferente, é `afetuoso´. Aí estão publicadas as cartas ao amigo Godofredo Rangel, em que Lobato se perguntava como seria possível `ser gente no concerto das nações´ com aqueles `negros africanos criando problemas terríveis´. Que problemas? Simplesmente serem negros, serem o que ele chamava de `pretalhada inextinguível´. O escritor sonhou ficcionalmente com a esterilização dos negros (vide O Presidente Negro) e sugeriu, muito antes do apartheid sul-africano, o confinamento dos negros paulistas em campos cercados de arame farpado.’
Mas note-se: ‘seu ódio aos negros não é nada que se deduza por interpretação de seu texto ficcional’. A diferença está visível, aqui. Não é na obra ficcional infantil que se vai encontrar a manifestação do ‘racismo confesso’. E, por outro lado, quem tem uma obra tão prolífica – dezoito volumes para crianças, mais o mesmo número de obras para adultos, entre contos, ensaios – não pode ser julgado por trechos isolados de uma única obra – note-se bem, de ficção.
‘Apagar Lobato da fotografia’
O autor do texto ora comentado reconhece que não são perceptíveis, a uma primeira vista, os laivos racistas, e que o indivíduo tem que querer localizar tal mensagem:
‘Se me perguntassem qual a minha relação pessoal com a literatura infanto-juvenil de Lobato, eu teria de ser honesto e confessar que, ainda menino, no interior do Brasil, era fascinado por suas narrativas. Francamente, eu nunca havia percebido os laivos racistas, que não são tão numerosos assim em sua obra ficcional, mas estão lá para quem se dispuser a bem enxergar.’
Os trechos que transcrevi diretamente da obra de Lobato apontam visivelmente para o desmentido da tese de que sua obra infantil tenha estado a serviço de propaganda racista. Claro que, para os que estão empenhados em visualizar nele um agente deformador das mentes infantis, tais transcrições serão tidas como não feitas, ou então como distorções: mas não estou me dirigindo a estes, que se servem das razões do lobo, contra as quais toda a racionalidade é impotente, fato sobejamente narrado por Esopo, Fedro, La Fontaine e… Lobato. Estou me dirigindo àqueles que, como o professor Muniz Sodré, estão dispostos a alinhar argumentos e a enfrentar os dados de fato que se lhes apresentem com o espírito científico, e não com a fúria da militância. Para os que julgam que o autor do texto com que ora se polemiza se teria alinhado entre os que gostariam de ‘apagar Lobato da fotografia’, é bom transcrever o último parágrafo:
‘Lobato era, sim, um bom escritor, um editor importante, um visionário (sempre acreditou na existência de petróleo no solo nacional), mas também um racista confesso.’
A propósito, uma pergunta: quem foi o primeiro a editar as obras de Lima Barreto, estando este ainda vivo e sofrendo as discriminações por ser mulato?
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Advogado, Porto Alegre, RS