Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Logo esqueceremos estas cenas

‘Se eu morrer, nasce outro que nem eu, pior ou melhor’ (Falcão, meninos do tráfico)

Foi chocante para os que profissionalmente já vivem nesse meio e insistentemente labutam por uma mudança, imagina para os que vivem alheios a esse mundo que nos cerca de pobreza, miséria humana e descaso com os direitos humanos da população mais pobre desse país. As cenas do documentário Falcão causaram o impacto desejado por seus realizadores, MV Bill e Celso Athayde, sobretudo naqueles lares onde há crianças bem tratadas e respeitadas como cidadãs.

Todo cidadão de bem deve ter deixado de dormir por algumas horas ante a preocupação de um futuro incerto não só para os falcões, mas também para nossos filhos e netos, ante a frase profética e ameaçadora de outra criança que vaticinou: ‘Se eu morrer, nasce um outro que nem eu, pior ou melhor’. Nascem milhares de falcões todos os dias, e cada vez mais nascerão, se as autoridades continuarem inertes e se a sociedade continuar sem se indignar ante essa barbárie que é cometida covardemente contra crianças indefesas.

Não faltarão aqueles que se aproveitarão de um ano político para renovar suas promessas nunca cumpridas de sanear os bairros pobres, levar creches, escolas e posto de saúde às favelas, programas sociais que desenvolvam as famílias que geram esses falcões, e não apenas esmolas e engodos, trabalho para os pais dessas crianças e, sobretudo, respeito e dignidade para todas elas.

Mas, se continuarem apenas no discurso, a tendência é piorar, e se o Bill acha que já chegamos ao fundo do poço há aqueles que acham que pode piorar ainda mais e já estão agindo para obter esse resultado. Enquanto crianças trabalham até 16 horas por dia para ganhar R$ 350 por mês soltando foguetes para avisar da chegada da polícia, ou oferecendo pó de R$ 5 ou de R$ 10, aos 3 anos de idade, o governo promete e não cumpre a promessa do primeiro emprego, não sem antes deixar de garantir o trabalho aos pais dessas mesmas crianças.

Nefastos exemplos

Os fiscais do Ministério do Trabalho, capitaneados por sua diretora regional e sob o acompanhamento rigoroso do Ministério Público Federal do Trabalho, mostra sua eficiência e, só nos últimos dois anos, conseguiu fechar dezenas de campings do Programa Patrulheirismo, que garantia, há mais de 30 anos, o primeiro emprego a milhares de jovens que, excluídos do mercado de trabalho, eram submetidos a treinamento com acompanhamento de assistentes sociais e psicólogos para serem inseridos no programa social de trabalho educativo.

No Tribunal de Justiça, felizmente, ainda temos algumas dezenas desses jovens que, graças ao Programa Social de Treinamento para o trabalho educativo, estão livres da tentação de virarem falcões. Mas não pára aí a ação insensível desses fiscais. Também o Programa Meninos a Postos, conduzido pela Cruzada do Menor, em convênio com a BR Distribuidora e as varas da Infância e da Juventude, que, após um ano de treinamento intensivo com os jovens e seus pais, conseguia um estágio de treinamento nos postos da BR para recepcionar e dar boas-vindas aos usuários, também foi exterminado pela sanha destruidora de cidadania desses senhores.

Ora, só nesses nefastos exemplos podemos concluir que o exército de falcões ganhará um substancial reforço, mas eles acham que ainda é pouco. E por meio de uma resolução da Secretaria de Ação Social do Município, sem aprovação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, resolveu mudar a política de proteção integral prevista na Constituição da República e no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente e, por uma questão meramente econômica, determinou o fechamento dos Abrigos Municipais Nelson Carneiro, Gonzaguinha, Arlindo Rodrigues e Ana Carolina, sob o pretexto de passar os jovens à guarda de Famílias Acolhedoras, que receberão R$ 500 por mês.

A serviço do crime

Trata-se evidentemente de uma série de equívocos que nos farão pagar uma conta social altíssima, além de repercussões financeiras desastrosas para a cidade. Primeiro que só quem acredita em Papai Noel pode achar que uma Família Acolhedora, um dos melhores projetos sociais já criados na cidade para acolher crianças vítimas de maus tratos temporariamente, será capaz de cuidar e educar um adolescente que desprezou sua família originária para viver nas ruas por um custo tão baixo.

Mas esse custo não é tão baixo assim como parece, porque logo depois, numa segunda etapa, essas Famílias Acolhedoras, bem orientadas, estarão recorrendo à Justiça do Trabalho para receber seus devidos direitos trabalhistas, e aí serão mais horas extras, periculosidade, férias, 13º salário etc. Esse processo de desfinanciamento da política pública que compete ao município, ao transferir a essas famílias acolhedoras a responsabilidade que a lei lhe atribui, é um retrocesso que só se justifica financeiramente pelos compromissos assumidos para a realização dos Jogos Pan-Americanos e a construção da Cidade do Samba, que deixou em baixa o caixa da Cidade do Rio de Janeiro.

Com o fechamento desses abrigos, em dia 31 de março, a sociedade pode contar com muitos outros falcões que, por falta de políticas públicas e por ausência de programas sérios de desenvolvimento de suas famílias, logo estarão a serviço do mundo do crime como única forma que lhes resta na busca de sobrevivência. Logo esqueceremos que há problemas sociais no Brasil, que há tantas crianças sem registro civil de nascimento, sem creches, sem escolas, sem famílias, como esquecemos as cenas de Cidade de Deus e esqueceremos também os lamentos dos falcões. Mas não será em vão, porque provavelmente os falcões se proliferarão e nos sufocarão cada vez mais e pagaremos no corpo por aquilo que não fomos capazes de fazer com a nossa indignação.

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Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio, ex-juiz da Infância e da Juventude