Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

‘Estamos órfãos do direito de resposta’

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) instituiu uma Comissão Especial de Defesa da Liberdade de Expressão, vinculada à direção da entidade, que foi empossada em Brasília na segunda-feira (2/6). A comissão é presidida pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto. Na solenidade de posse, o presidente da OAB Marcus Vinicius Furtado Coêlho afirmou, conforme nota publicada no site da entidade, que “permitir que a liberdade de expressão e de imprensa se desenvolva é uma forma de efetivação da Constituição Federal”. Disse também que “numa democracia, os inimigos da comunicação e da liberdade são mais sutis do que em uma ditadura” – e por isso apontou a necessidade de uma vigilância permanente, papel a que se propõe a comissão. De sua parte, Ayres Britto sublinhou que “não há democracia sem liberdade de imprensa”, para reiterar que “a democracia se constrói com liberdade de expressão, o debate crítico é emancipador e libertário”.

A Comissão Especial de Defesa da Liberdade de Expressão da OAB é integrada por 14 juristas, entre os quais está a advogada Taís Gasparian. Paulistana (1958), ela é graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela mesma instituição, e atua, por intermédio do escritório do qual é sócia – Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian Advogados – como advogada do jornal Folha de S.Paulo. É com ela a entrevista a seguir.

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A liberdade de expressão não está garantida na Constituição? Por que ela precisa de defesa?

Taís Gasparian – Temos diversos [elementos], desde decisões judiciais como iniciativas do Congresso e do Executivo que podem afetar a liberdade de expressão para o lado negativo, no sentido de limitá-la. A OAB resolveu instituir essa Comissão de Liberdade de Expressão justamente para poder acompanhar o que anda acontecendo e também oferecer sugestões para o Conselho Federal [da entidade] tomar algumas decisões – como alguma medida judicial, ou emitir uma opinião, ou tomar alguma atitude no sentido de defender a liberdade de expressão.

Pode dar exemplos de iniciativas que comprometem a plena vigência da liberdade de expressão no país?

T.G. – Nós ainda não fechamos completamente [na Comissão] quais serão as primeiras linhas de análise e de debates. Mas já conversamos sobre alguns aspectos que poderão ser abordados. Um deles é a questão do Marco Civil da Internet, sobretudo a neutralidade da rede. A neutralidade da rede não está exatamente ligada à liberdade de expressão, mas diz respeito a um conceito correlato que é a liberdade de as pessoas receberem informação.

Vocês estão preocupados com a regulamentação dos dispositivos do Marco Civil?

T.G. – Esse é um dos pontos, a regulamentação desses dispositivos. Que foram bem tratados, de modo geral, pela lei; mas isso, para se manter, precisa de uma regulamentação, sobretudo nessa parte da neutralidade da rede, que vá de acordo com tudo isso e aprofunde. Outra questão, que foi levantada pelo Manoel Alceu Affonso Ferreira [também integrante da comissão], foi o da censura togada – e o caso exemplar é o do Estado de S.Paulo. Isso é importante ser observado principalmente agora, quando teremos eleições: é a época mais propícia para haver essas iniciativas. O que eu sempre aponto nesses casos é que a imprensa lida com uma questão que é o timing da notícia. Não adianta muito interromper agora a divulgação de uma notícia sobre um candidato para só poder divulgar essa notícia depois da eleição. A imprensa lida com a atualidade, e [por isso] tem uma certa urgência [nas decisões editoriais]. Uma outra questão que abordamos [na primeira conversa] foram três dispositivos do Código Civil – e eu me bato contra esses dispositivos há alguns anos. São os artigos 17 [“O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.”], 20 [“Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.”] e 21 [“A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.”], que são os que muitas vezes dão o fundamento jurídico de um pedido para suspender a divulgação de uma matéria jornalística, ou então para retirar uma notícia da internet. Então, se houver uma ameaça de uma ofensa a um nome ou uma ameaça de ofensa moral, está lá nos dispositivos, de um modo geral, que o juiz pode determinar a suspensão do ato ilícito. São dispositivos que têm validade e eles são constitucionais no que diz respeito a diversos aspectos da vida. Mas eles não são constitucionais, a meu ver, no que diz respeito à imprensa – óbvio, havendo interesse público: nós estamos falando de interesse público e de pessoas públicas.

São esses dispositivos, pelo menos dois deles, que acabam impedindo ou atrapalhando a produção de biografias. Isso agora está sendo discutido, tem até projeto de lei para biografias, mas não tem o mesmo para a imprensa. A meu ver, esses dispositivos são inconstitucionais no que diz respeito à imprensa e à edição de livros.

E como fazer com que exista essa distinção na cabeça de um juiz de primeira instância?

T.G. – Existe uma medida judicial, que inclusive foi muito estudada pelo ministro [do STF] Gilmar Mendes e por diversos outros juristas, que é uma ação de inconstitucionalidade que visa a aplicar uma “interpretação conforme”. Então, você interpreta os dispositivos conforme a Constituição, e nesse sentido eles seriam inconstitucionais no que diz respeito à imprensa, mas não [em relação a] outros aspectos da vida. Haveria uma declaração de inconstitucionalidade no que se refere à imprensa, ou às biografias, ou a livros etc. Se existir uma declaração de inconstitucionalidade, os juízes de primeira instância têm que obedecer.

Para o bem e para o mal, a revogação da Lei de Imprensa acarretou o fim da profissão de jornalista e o fim do direito de resposta. Como está hoje a aplicação do direito de resposta? Como fazer com que esse mecanismo tão básico e tão simplório da relação entre o público e a imprensa possa ser efetivado sem grandes delongas?

T.G. – Uma correção: foram dois processos distintos. O da revogação da obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o exercício da profissão, quem foi o relator foi o ministro Gilmar Mendes; eu trabalhei no caso, fiz a sustentação oral pela revogação do diploma de jornalismo. Sobre a Lei de Imprensa, quem foi o relator daquela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 130) foi o então ministro Ayres Britto, hoje presidente da Comissão Especial de Defesa da Liberdade de Expressão da OAB.

Especificamente com relação ao direito de resposta, este é um dos aspectos que estamos pensando em abordar nessa comissão. Nós estamos completamente órfãos sobre o assunto. Eu trabalho bastante nessa área, já recebi em meu escritório [ações desse tipo] e nós acabamos tentando seguir o rito que estava previsto na Lei de Imprensa para o direito de resposta. A única diferença é que no direito de resposta pela [antiga] Lei de Imprensa a competência era criminal, e agora todo mundo está preferindo entrar na área cível, e muitas vezes nos juizados especiais – o que complica bastante, porque, afinal, você pode ter ações de direito de resposta “bombando” em todo o país e às vezes é difícil controlar isso.

Efetivamente, não há um mecanismo de direito de resposta confiável e ágil.

T.G. – Não há. Mas ele existe, está previsto na Constituição, só que por enquanto cada um vai fazendo de um jeito. Eu – como diversos escritórios que conheço – tento seguir o rito anterior. Mas hoje não existe nenhuma regulamentação sobre isso. Ou bem nós esperamos a jurisprudência estabelecer um procedimento, o que vai demorar anos, ou bem o Congresso Nacional vai ter que se mexer para [votar uma legislação que garanta] o direito de resposta.

Há alguma movimentação nesse sentido?

T.G. – Há algumas coisas, mas nada de muito concreto. [Em geral], sempre acabam misturando: colocam direito de resposta e colocam também controle da imprensa – e daí a coisa começa a não andar.

Como você avalia essa discussão que vai não vai, começa e recua, sobre a necessidade de alguma regulação, sobretudo nos meios eletrônicos, da mídia brasileira?

T.G. – Dois integrantes da comissão estão bem a par desse assunto e do que está acontecendo, porque é mais uma iniciativa do Executivo nessa seara. E esses dois integrantes revelaram bastante preocupação com o assunto, na primeira reunião que fizemos. Eu não tenho nenhuma opinião da comissão sobre isso – aliás, tudo o que estou falando aqui são posições pessoais minhas. Nesse sentido, eu acho extremamente perigoso qualquer controle de mídia, porque isso pode esbarrar em atos que acabem sendo piores e nocivos no futuro.

Não se pode nem se poderá discutir qualquer tipo de controle de conteúdo. Mas quando se trata de emissoras de rádio e TV, que são concessões públicas, não lhe parece que é razoável que exista aí algum tipo de regulação do papel que essas emissoras desempenham?

T.G. – Não sei exatamente de qual tipo de regulação você fala. Mas, por exemplo, na lei eleitoral já há regulações – e não estou falando só do horário gratuito, mas de matérias jornalísticas mesmo. [Nesse sentido] a mídia eletrônica é muito regulada; a mídia impressa, não. Não estou falando de internet, mas a televisão e o rádio são bem controlados em época de eleições. Quando se quer oferecer espaço para todos os candidatos de forma razoavelmente equivalente, isso já está bem regulado.

No caso da legislação eleitoral, sim, mas e no caso da programação em geral? Por exemplo, o artigo 221 da Constituição não está regulamentado. Você não considera que as emissoras de rádio e TV têm, em alguma medida, uma responsabilidade a cumprir com a cidadania no sentido da regionalização da produção, em abrir espaço para as manifestações culturais, enfim, aquilo que está previsto na Constituição e que não está sendo aplicado?

T.G. – O que eu sinto como perigo é que daí se extrapole para outro tipo de controle, um controle que Deus sabe lá como vai ser exercido. Eu acho que não deve haver controle algum, por ora, mas eu também não tenho uma opinião absolutamente formada sobre isso.

A ideia é que se evite situações como as de monopólio, de propriedade cruzada dos meios de comunicação, embora essas situações já existam no país em razão da própria formação histórica da nossa indústria de mídia. Como você avalia isso? É uma discussão pertinente?

T.G. – Sem dúvida, a discussão sobre o assunto é bem importante. Mas o exemplo que nós tivemos na Argentina eu acho que é péssimo. Não me parece que se tenha respeitado o que foi discutido, e no que se teve de decisão eu acho que foi muito ruim – com controle, inclusive, do papel-jornal. Eu vejo isso com muita cautela.

No caso da Argentina houve uma discussão muito ampla em todos os setores da sociedade antes que a lei fosse também discutida e votada no Congresso. Esse procedimento foi viciado, na sua opinião?

T.G. – Não acho que o procedimento de discussão tenha sido viciado, só acho que as atitudes tomadas posteriormente não espelham exatamente a discussão [havida].

Como você, operadora do Direito, interessou-se por trabalhar na área da mídia, justamente nesse campo tão complicado?

T.G. – É muito melhor trabalhar naquilo em que se acredita, principalmente para os advogados. E eu busquei isso: o meu primeiro estágio foi com o Manoel Alceu Affonso Ferreira, que era [e é] advogado do Estado de S.Paulo. Depois eu vim a ser, e sou, há mais de 22 anos, advogada da Folha de S.Paulo e também de outros clientes nessa área. Acho que foi uma questão de aptidão, de curiosidade e, sobretudo, de uma causa que me interessa. Vale a pena viver e trabalhar para isso.