‘Autoridades resgatam mais 8 corpos; no total são 24.’ Ninguém percebeu a impropriedade, o titulo ficou pendurado e intocado na home page do portal UOL a partir do final da noite de segunda-feira (8/6) e assim permaneceu durante a madrugada de terça.
Autoridades não resgatam corpos, na melhor das hipóteses comunicam os resultados da operação de resgate que está sendo conduzida – aparentemente com muita competência – por profissionais da Aeronáutica e da Marinha.
O lapso freudiano do redator revela um ingrediente que não aparece nos relatos jornalísticos impressos ou falados: a ciumeira entre os militares brasileiros e franceses. Ao utilizar um substantivo que pressupõe altas patentes pretendeu-se evidentemente tomar partido e defender nossas cores. Autoridades francesas não acessam portais brasileiros.
A absurda rivalidade ficou clara na entrevista coletiva da manhã de segunda-feira (8), no Recife, quando as autoridades militares brasileiras corrigiram a informação do dia anterior: não foram 17 corpos recolhidos do mar e sim 16. O erro foi atribuído formalmente aos franceses e desvenda algo que não sabíamos. E não sabíamos porque não foi revelado pela imprensa: a fragata francesa que participa das buscas também recolheu despojos mortais das vítimas do desastre.
Quantos? Este placar não importa, ou importa menos. Interessa é informar que a cooperação internacional está funcionando e que, ao omiti-la dos comunicados, nossas autoridades estão se comportando de forma imatura, provinciana e chauvinista.
Patriotada e corporativismo
Este viés patrioteiro e/ou corporativo também ficou evidente no comentário do tenente-coronel aviador Henry Munhoz, que na coletiva da segunda-feira à noite gabou-se de que em setembro de 2006 a força aérea localizou em menos de 24 horas, no meio da selva amazônica, os destroços do Boeing da Gol e recuperou os corpos de todas as vítimas.
A memória do coronel prestou um grande serviço à nossa desmemoriada mídia: ao longo de uma semana de intenso noticiário ela conseguiu passar ao largo dos desastres de 2006 e 2007, um deles com um Airbus (o mesmo fabricante do avião agora sinistrado). Nossos delicados e respeitosos profissionais de imprensa não queriam incomodar as autoridades que dois e três anos depois não haviam ainda concluído os inquéritos nem apontado causas e responsáveis pelas tragédias.
Nossos grandes veículos estão com correspondentes e enviados especiais na capital francesa, mas não explicaram aos seus leitores, ouvintes e telespectadores o significado da ação aberta pelo Ministério Público de Paris para enquadrar os responsáveis pela catástrofe por ‘homicídio culposo’. Ministério Público não é governo, é Estado. E o Estado francês sentiu-se obrigado a dar uma satisfação imediata à sociedade francesa, à cidadania francesa. Retórica modelo Asterix? Não faria mal algum copiar este tipo de retórica. Revigora a noção republicana.
Mas foi o governo, o poder executivo francês, quem nomeou um diplomata para conduzir os contatos e providências com as famílias das vítimas. Por que um diplomata? Por que grande parte das vítimas é estrangeira. Frescura? Frescuras como esta não devolvem vidas, não amenizam a dor, não compensam as perdas nem tiram o luto. Mas tornam mais suportáveis as perdas e o luto.
A célebre cordialidade brasileira carece de um pouco menos de hipocrisia, um pouco mais de memória. E, principalmente, compostura.