Folheando a internet outro dia, cheguei ao site da Folha de S.Paulo; procurava fotos da Parada Gay de São Paulo, o maior evento do gênero na América Latina. Ouvi dizer que havia 1 milhão de participantes no ano de 2003. Naquele ano eu estava na Parada Gay de Manaus, e posso afirmar que foi a coisa mais impressionante que já havia visto até então. Milhares de pessoas nas ruas, defendendo o direito de existir e de ser feliz. Milhares de pessoas defendendo a liberdade de expressão, a liberdade à diferença: gays, lésbicas, travestis, heterossexuais, todos unidos na esperança de um mundo melhor, mais tolerante e mais livre.
Na edição de 2004, pude apenas olhar as fotos na internet. Para quem quiser conferir, o endereço das fotos é (www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2004/paradagay/galeria.shtml). Contudo, um detalhe, que nem é tão detalhe assim, me deixou aborrecido. Das 28 fotos disponíveis no site, apenas três mostravam homens gays vestidos de homem. Ou melhor, numa das fotos você vê apenas três rapazes obscurecidos pela sombra da bandeira do arco-íris; em outra, sim, você vê um grupo de amigos celebrando a festa; e na terceira, bem, a terceira é um homem vestido de sunga e capa negra, com direito a coleira, pulseira e faixa do zorro nos olhos – me desculpem, não achei muito masculino.
E os gays desempregados?
Pois bem, em outras 10 fotos, apenas panorâmicas da situação – a Av. Paulista repleta de gente e de bandeiras coloridas, a então prefeita Martha Suplicy, depois ela com o marido, esse tipo de coisa. O restante, as outras 15 fotografias, davam destaque a travestis devidamente paramentadas, ‘montadas’ – como se diz no meio – e prontas para arrasar (numa delas, para dizer a verdade, fiquei em dúvida se era uma travesti ou uma mulher… mas isso não muda muito meu argumento).
Nada contra travestis, vejam bem, o que me incomoda é que a mídia, no caso a Folha, uma das publicações mais respeitadas do país, não veja muita distinção entre gay e travesti, buscando destacar apenas o pitoresco, a imagem cômica, a mais extravagante ou ridícula, pois é sucesso garantido. Há estudos divulgados pelo maior centro de pesquisas sobre a sexualidade humana no mundo – o Instituto Kinsey, dos EUA – que afirmam estar entre 5% e 10% a parcela da humanidade que tem preferência por relações sexuais homossexuais. Minha própria experiência não desmente as estatísticas. Mas esses números não são divulgados.
Procurando pelas ruas de qualquer grande metrópole brasileira, qualquer um observa que o número de travestis corresponde a uma fração mínima desses milhões de brasileiros homossexuais. Por que um jornalismo sério, como acredito que ainda é a Folha, não pode mostrar em suas fotografias uma proporção sensata da realidade? Procurava nas fotos os gays comuns, os trabalhadores do dia-a-dia, advogados, jornalistas, dentistas, motoristas, cientistas e os gays desempregados, como não?, que levam uma vida gay sem precisar sair de salto alto e maquiagem para se sentirem realizados em sua plenitude. Eu mesmo passei por uma fase dolorosa de auto-descoberta em minha adolescência, e sei que muitos homossexuais enfrentam o mesmo. O maior medo é ser rejeitado pela família, pelos amigos, perder o respeito geral, ser expulso de casa, ter que deixar a escola, enfim, tornar-se um pária.
Respeito e reconhecimento
Quem nunca assistiu a um pai de família machista fazer comentários degradantes e até violentos quando vê travestis na televisão, que geralmente exibem comportamento provocativo, igualmente agressivo? Quem saberia me responder quantos pais nutrem a ilusão de que um filho gay correria enorme risco de se tornar uma ‘monstruosidade’ semelhante? Há gays e gays, como também há diversas qualidades de masculinidade heterossexual.
Enquanto a mídia contribuir com a formação de estereótipos, com a ridicularização e banalização do homossexual – pelo humor forçado de figuras como Vera Verão e tantas outras –, a sociedade permanecerá distante daquilo que as paradas gays em todo o país buscam: o encontro com a verdade, a discussão aberta, o diálogo, o reconhecimento público das diferenças que existem e existirão, e que devem ser respeitadas.
O fato que não quer calar é que nem todo gay é afeminado, nem todos são travestis, nem todos gostam de usar roupas que beiram o absurdo, e mesmo assim todos esses devem ser igualmente respeitados. Porém, o respeito só vem com o reconhecimento, e este só será possível quando a mídia abrir mão do espetáculo em nome da verdade imparcial.
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Biólogo, São Gabriel da Cachoeira, AM