Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mansidão popular, notícias sem sal

Com a provável única exceção de Elio Gaspari, que condenou e argumentou contra a greve dos médicos do Nordeste, dois outros fenômenos podem ser observados: a população que bovinamente se submeteu a essa situação e a cobertura de imprensa, na grande maioria dos casos em cima do muro.

Acho que me sinto confortável para comentar o assunto: sou médico, fui presidente de centro acadêmico, liderei greves como estudante nos idos tempos do regime militar (mas sem conotação política, pois a barra era pesada demais para ir além das reivindicações pontuais), participei ativamente de outras como residente e mesmo como médico assistente e como docente.

Após mais de 26 anos de exercício profissional, sem entrar na fala do presidente de que adultos de esquerda são malucos ou coisa que o valha, e reconsiderando todos os fatos à luz da ética médica e no trato com os pacientes, além de concordar integralmente com as reivindicações dos médicos, creio ter adquirido um certo olhar diferenciado para analisar essas situações. E que talvez possam ser extensivas a outras funções ditas essenciais, como nas recentes iniciativas do governo ex-sindicalista para enrijecer o direito à greve.

Dependência do SUS

Por onde começar? Acho que o mais simples é pela cronologia mesmo – quando jovens, sejamos de esquerda ou direita, para resguardarmos e garantirmos aquilo que consideramos nossos direitos, somos muito mais impelidos a tomar atitudes mais drásticas. Aliás, as greves estudantis nos anos 1970, mesmo que clamassem por melhorias de ensino, por definição eram coisa de subversivos: nunca encostaram a mão em mim, mas tive várias vezes agradáveis encontros no DOPS, Polícia Federal e Forças Armadas da época, com pressão psicológica incrível, que começava por eu não ‘respeitar os valores da família’,’o que meus pais diriam de mim’ até ameaças de me mandar para o DOI-Codi ou para o temido delegado Fleury. Felizmente todos esses episódios acabaram sem nada de mais, com pedidos de desculpa (‘é o nosso trabalho’, disse um delegado da PF de então, ‘espero que a gente se encontre em outra situação para tomar uma cerveja’). Mas, claro, uma bobeada qualquer de minha parte poderia ter me lançado em situações indescritíveis.

Como residente, embora médico já, porém recém-formado, o espírito estudantil prevalecia ainda e não era difícil entrar em greve. E como o residente não pode estar sem supervisão nos bons hospitais, se entrassem em greve dariam talvez mais trabalho aos médicos assistentes, mas nenhum paciente se prejudicava.

As greves das quais participei já como médico especialista respeitaram um princípio fundamental do Código de Ética e das orientações do CRM: não deixar de atender nunca emergências. Na prática, transtornos para os pacientes com consultas marcadas em ambulatório e com cirurgias eletivas marcadas, mas o pronto-socorro acabava assumindo a grande demanda. Hoje em dia, as coisas são mais complexas, pois a dependência da população pelos serviços públicos de saúde, pelo SUS, são maiores e é claro que a população sofre mais. Em estados como Alagoas, onde mais de 90% dos habitantes dependem do SUS, nem há o que dizer então quando ocorre qualquer tipo de paralisação.

‘Economizar’ com a paralisação

Mas há algo de novo no ar – antes, devo dizer que concordo in totum com as reclamações dos colegas desses Estados, pois o que o nosso sistema público paga é indecoroso, indecente e tudo o mais que as pessoas puderem pensar. Medicina é sacerdócio ? Em parte, sim, mas quem paga as contas dos profissionais da área?

Uma pequena análise de uma greve de médicos de serviços públicos versus as da iniciativa privada, especialmente de setores produtivos, como metalúrgicos ou bancários, por exemplo. Se os operários de uma fábrica param, por qualquer lógica, sem merecer qualquer análise ideológica, uma coisa muito simples acontece: aquela empresa passa a ter prejuízo e essa arma faz as negociações entre empregados e patrões se acelerarem.

Por outro lado, se os médicos de hospitais públicos param, ocorre o fenômeno inverso: não só ninguém está perdendo dinheiro, como, com menor movimento de atendimentos, o governo até economiza em gastos com medicamentos, internações, exames, cirurgias etc. Por essa questiúncula, greves de profissionais de saúde tendem a ser prolongadas: os governos, preocupados com a população, vão empurrando com suas barrigas essas greves até o cansaço dos grevistas – o povo que se dane, no período eleitoral os políticos dão um jeito de convencer os votantes de sua preocupação com a saúde e aproveitam a greve para economizar (?) com hospitais e postos parados…

Risco de vida

Os dados novos nessa recente onda grevista merecem uma análise mais apurada. Em primeiro lugar, uma nova figura apareceu: como os salários ou pagamentos diretos via SUS são ridículos mesmo, entrou em cena a figura da demissão. E, seguindo todos os passos: cumprir aviso prévio e dar adeus ao serviço público. Caso isso se dissemine, quem vai atender a imensa maioria dos brasileiros dependentes do SUS? Ninguém pode obrigar o médico a trabalhar onde ele não quer – qualquer que seja o motivo, desde que ele siga os devidos passos legais. Aí, os próprios governos começaram a cair em uma armadilha montada desde os anos 1990, aos poucos: ir acabando com a figura do médico funcionário público, concursado, regido pela CLF e com deveres especiais, que incluem poderem ser convocados pelo Poder Público, em tese, a qualquer hora, pelo empregado público: o médico não é selecionado por concurso; é contratado pela CLT e tudo é feito para que ele não alegar na Justiça do Trabalho a estabilidade e a aposentadoria integral, próprias dos funcionários estáveis – timidamente iniciado no governo Collor, no governo FHC isso se disseminou e se ampliou mais ainda no governo Lula. Sem esquecer que não é o governo federal quem contrata médicos para atendimento direto, e sim estados e municípios. Essa ‘arma’ contra o funcionário estatutário tirou das mãos dos governos o poder de obrigar a volta ao trabalho desses profissionais – daí poderem pedir as contas…

O outro dado novo é mais preocupante e, embora simpatize com as reclamações dos grevistas, não há como deixar não apenas o Código de Ética Médica de lado, como a própria questão humana: não dá para deixar de atender emergências. Não é à toa que a paciente que aguardava uma cirurgia cardíaca considerada emergencial morreu quando os cirurgiões cardíacos de seu estado resolveram não atender nada. As coisas aí se complicam e muito: a média de pagamento integral para uma cirurgia cardíaca pelo SUS é de R$ 70,00. Alguém, em sã consciência, pode considerar isso justo, adequado ou coisa que o valha? Claro que não. Mas tais cirurgiões, ao pararem por completo, acabaram gerando situações de risco de vida, o que lamentavelmente ocorreu – e a citada paciente ainda havia dado uma entrevista à televisão na véspera do óbito. Qualquer simpatia que alguém pudesse ter pelas justas reclamações desses profissionais cai completamente por terra.

Quem mandou ser analfabeto?

São várias sinucas de bico, não é mesmo? Mas o mínimo de inteligência e de respeito deve nortear o trabalho médico: não há princípio ético algum, mesmo interpretado com o maior dos malabarismos, que permita ao profissional deixar de atender em serviços e/ou situações de urgência e emergência. Aí não dá para fazer coro ao lado dos mesmos.

É imperativo que o médico – e ele sabe disso, provavelmente até antes de entrar para a faculdade – deva fazer o bem, e não o mal a seu paciente (esse é princípio hipocrático presente no famoso juramento na formatura, já há 2.300 anos). Omissão de socorro é infração ética grave, sem falar nos aspectos judiciais.

Mas no Brasil tudo pode ocorrer: gigantescos escândalos políticos (não apenas neste governo, é bom dizer) são apagados da memória coletiva (se é que os eleitores os priorizem mesmo, o que não parece ser verdade, de acordo com recente pesquisa da Datafolha, entre a população menos instruída). Os governos – todos, sem cor ou partido – pagam mal a médicos e demais profissionais de saúde, professores, policiais militares, mas reservam polpudas verbas para cargos de confiança e apaniguados, mesmo sem se considerar corrupção – em especial para a turma da área econômica e do trabalho político mais refinado. E a Justiça acaba por ter poucos elementos para agir, pois a legislação não é mesmo lá essas coisas. E como acabam economizando, se alguém morrer, ora, deveria ter mudado de classe social, quem mandou continuar analfabeto?

Saúde suplementar

O país precisa, com muito e muito atraso, dar prioridade às tão decantadas áreas sociais. Essa dívida nunca foi paga por governo algum à população brasileira, a menos que se acredite que ‘nunca nesse país’ se fez tanto nessas questões: e é ainda mais triste observar que a fabulosa quantia de uma Bolsa Família torna o eleitorado dela dependente ferreamente ao lado do presidente. Quando podia atrair votos e simpatia, usava a cor vermelha nas bandeiras de seu partido, reclamava por CPIs e tudo o mais até chegar ao Planalto, mas na verdade nunca foi nada disso.

É inegável uma qualidade de Lula: imaginar o típico retirante nordestino chegando à Presidência e ser reeleito é de surpreender a qualquer um. Mas deve ser levada em conta a origem do partido, de seus principais integrantes e do próprio presidente: os sindicatos. E essas instituições não são exatamente filantrópicas, mesmo em relação aos próprios filiados. E se governa o Brasil como se ainda se estivesse em um grande sindicato. Aliás, também não é à toa que Delfim Netto, ícone do regime militar, tenha se tornado amigo de infância de Lula: em uma entrevista à Veja, alguns anos atrás, ele mesmo lembrou que quando eleito presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em 1972 (salvo engano), em seu discurso Lula criticou durante os regimes ditatoriais marxista-leninistas e se declarou não-ateu. Não foi preciso a teoria do general Golbery criar o PT, pois desde cedo se sabia que Lula atraiu a oposição de então para si com seu carisma e discurso de esquerda, mas sem que se percebessem coisas como as acima citadas, mostrando desde o início um peleguismo getulista ou peronista, só que muito mais inteligente,sem dúvida.

Temos cerca de 40 milhões de brasileiros com direito a algum tipo de plano de saúde, a saúde suplementar, que alguns denominam de ‘SUS para quem tem carteira assinada’. Nem sempre é assim, há empresas sérias no setor. Mas para o futuro ninguém sabe o que nos aguarda e no presente há uma maioria dependendo do sistema público: esses compatriotas vão sempre ficar à míngua na saúde?

Parar emergência é indefensável

Creio que seria útil – sempre levando em conta o nunca negado engajamento político e a edição brilhante – ver o último documentário de Michael Moore, Sicko, apresentado pela primeira vez em Cannes e agora nos EUA. Na Europa, estreará em alguns países apenas em novembro. Por aqui, nem previsão existe. Contudo, tive a oportunidade de assistir ao mesmo e, voltando a lembrar que o filme deve ser assistido com a devida precaução, há verdades incontestáveis ali – não deixa de ser uma aula sobre planos de saúde e assistência pública, nos EUA, principalmente, mas mostrando algo do Canadá, França, Reino Unido e Cuba.

A imprensa precisa se informar técnica e juridicamente para dar as informações corretas sobre tais assuntos, o que raramente ocorreu, mesmo agora tendo terminado a greve em Alagoas. É serviço a ser prestado com responsabilidade e qualidade.

Finalizando, tudo que foi reivindicado é mais do que justo: mas os governos nada sofrem com isso, apenas a população menos favorecida e, por Hipócrates, parar emergência não é defensável em circunstância alguma!

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Médico, mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, ex-conselheiro e ex-diretor do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo