Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Marcelo Beraba

‘Os trágicos acontecimentos provocados pela publicação de charges do profeta Muhammad em um jornal dinamarquês e pelas reações incitadas por líderes muçulmanos comprovam que seguimos em uma trajetória de intolerância e radicalismo.

As charges foram editadas em setembro pelo jornal ‘Jyllands-Posten’ com o intuito declarado de discutir a autocensura na Dinamarca. Segundo as várias versões que li, o jornal encomendou as charges a 12 desenhistas depois que tomou conhecimento de que um autor de livro infantil tivera dificuldades para contratar um ilustrador para a obra que escrevera sobre a vida de Muhammad. O islã condena a idolatria e por isso proíbe a figuração da imagem do profeta. Os desenhistas contatados não aceitaram o trabalho com medo de represálias. O que acabou por produzir as ilustrações pediu para não as assinar.

Embora tivesse um propósito jornalístico, a publicação das charges ignorou, conscientemente ou não, quatro aspectos que saltam aos olhos:

1 – Uma onda crescente para estigmatizar o islamismo tomou conta dos Estados Unidos e da Europa com a desculpa de combater o terrorismo.

2 – Na Dinamarca, como em outros países europeus, a rejeição aos muçulmanos tende a dar fôlego a movimentos xenófobos que têm como objetivo expulsar os imigrantes ou dificultar sua integração.

3 – Há no mundo árabe um forte sentimento de repulsa aos EUA e a vários países europeus por conta da invasão do Afeganistão e do Iraque, do apoio a Israel e de vários contenciosos políticos e econômicos.

4 – Uma das charges, a que representa o profeta com um turbante em forma de bomba, pode ser vista como um insulto porque identifica todo o islã com o terrorismo.

Houve uma reação inicialmente moderada de líderes muçulmanos dinamarqueses e um pedido de desculpas formal do jornal. Mas o caso extrapolou as fronteiras da Dinamarca e ganhou a dimensão a que assistimos com a reprodução das charges por outros jornais europeus -com o intuito de defender a liberdade de expressão- e a reação violenta de líderes políticos e religiosos de países muçulmanos.

As conseqüências são conhecidas: 13 manifestantes mortos no Afeganistão, na Líbia e na Somália e a condenação dos cartunistas dinamarqueses à pena máxima decretada por radicais do Paquistão. A discussão sobre liberdade de imprensa foi, portanto, atropelada pela onda de violência e de intolerância.

As manifestações de rua ocorrem simultaneamente a dois fatos relevantes: a vitória do Hamas nas eleições palestinas e a pressão para que o Irã abdique de seu programa nuclear. O pano de fundo, portanto, é uma crise internacional.

Limites e fronteiras

Os três principais jornais brasileiros custaram a acordar para a notícia, mas, depois que os protestos cresceram no mundo árabe e se tornaram mais violentos, eles fizeram coberturas extensas e procuraram contemplar as desinteligências em jogo.

Os posicionamentos editoriais dos três jornais foram bem diferentes e refletem a divisão (ou confusão) que se instalou na imprensa do mundo inteiro em relação à publicação das charges. Esse é um dos aspectos mais interessantes na análise do ocorrido.

A Folha e ‘O Globo’ republicaram as charges mais polêmicas; o ‘Estado de S.Paulo’, não.

A Folha, no editorial ‘Censura religiosa’ (5/2), defendeu a ‘tradição iluminista’: ‘Ainda que algumas das charges sejam de gosto duvidoso, não se pode acatar argumentos que levem à interdição prévia de imagens ou temas sob a justificativa de que ferem suscetibilidade desta ou daquela religião’.

Em outro trecho: ‘(…) o conflito se dá entre um direito que aspira à universalidade, de um lado, e uma ofensa que apenas ganha sentido dentro de um sistema religioso, de outro. Não há dúvida de que, nesse caso, as democracias devem optar pela defesa do valor mais importante -a liberdade de expressão-, mesmo que isso signifique contrariar uma comunidade religiosa’.

O editorial do ‘Estado’, ‘Jornalismo irresponsável’ (7/2), foi em direção oposta: ‘A fúria desencadeada no mundo árabe-muçulmano pela charge publicada originalmente em setembro (…) é a resposta que se poderia esperar à monumental irresponsabilidade de quem autorizou a sua publicação’.

O ‘Estado’ considerou a charge do turbante em formato de bomba uma manifestação de islamofobia e criticou os jornais europeus que reproduziram os desenhos. Na opinião do jornal, o ‘Ocidente não seria o que é, efetivamente, sem o direito à livre circulação de idéias, opiniões, informações e expressões artísticas’, mas recorreu ao editorial do jornal inglês ‘The Guardian’ para afirmar que ‘há limites e fronteiras -de gosto, leis, convenções, princípios ou juízos’.

‘O Globo’ fez dois editoriais (‘Choque frontal’, no dia 4/2, e ‘Derrota da razão’, no dia 8/2), mas em nenhum dos dois se posicionou como os seus concorrentes paulistas. No primeiro, constata que ‘em nenhum outro ponto a fronteira entre o islã e o Ocidente é mais nítida do que no da liberdade de expressão’. E, no segundo, defende que o momento já não é de discutir os limites deste direito, mas de ‘pôr fim ao radicalismo fundamentalista que obscurece a razão e começa a fazer vítimas dos dois lados’.

O ponto de vista da Folha foi contestado por dois de seus principais colunistas. Carlos Heitor Cony lembrou, na coluna ‘Liberdade de expressão’ (7/2), que ‘os manuais da Redação de quase todo o mundo proíbem ofensas a raças e religiões indistintamente’ e concluiu: ‘A defesa histérica e incondicional da liberdade de expressão é, no fundo, a expressão de um corporativismo da mídia, que, em alguns casos, mascara a truculência e, em outros, a burrice’.

Na quinta-feira, Demétrio Magnoli foi ainda mais contundente no texto ‘Este crime chamado liberdade’. Ele considerou a charge com o turbante em forma de bomba um ‘insulto grosseiro’: ‘E a defesa do direito de publicação dessa charge, em nome do princípio iluminista da liberdade de expressão, equivale a uma perversão intelectual. Parte significativa da mídia ocidental, inclusive a Folha, engajou-se alegremente na elaboração desse sofisma libertário’. Ele avalia que ‘a liberdade de incitar o desprezo e o ódio ao islã serve à agenda política da ‘guerra de civilizações’.’

Dois pesos

Está claro que a publicação das charges não justifica a onda obscurantista que acompanhamos. Mas a condenação da violência e a defesa da liberdade de expressão não significam que os jornais devam publicar qualquer coisa. Todos os jornais se impõem limites de acordo com suas diretrizes editoriais. Não sei se a Folha publicaria a charge se ela fosse inédita. O ‘Manual da Redação’ explicita, na sua página 84, que ‘as minorias étnicas, raciais, religiosas, sexuais, políticas, ideológicas ou de qualquer outro tipo devem ser tratadas sem preconceitos pela Folha’.

A liberdade de expressão não anula a responsabilidade editorial. Neste sentido, o que mais me impressionou no caso do jornal dinamarquês foi a informação colhida pelo colunista Nelson de Sá em vários jornais europeus e publicada na coluna ‘Toda Mídia’ do dia 7/2. Antes de editar as charges sobre Muhammad, o editor do ‘Jyllands-Postern’ havia se negado a publicar charges de Jesus Cristo com o seguinte argumento: ‘Não acho que nossos leitores vão gostar dos desenhos. De fato, acredito que eles provocariam um clamor. Portanto, não vou usá-los’.’

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‘Maomé/ Muhammad’, copyright Folha de S. Paulo, 12/2/06.

‘O ‘Painel do Leitor’ recebeu 39 cartas até sexta-feira sobre o noticiário das charges. Só uma criticava a Folha por ter republicado os desenhos do jornal dinamarquês. O ombudsman recebeu apenas oito mensagens, nenhuma com críticas à cobertura do jornal. Seis leitores quiseram saber por que o jornal grafa Muhammad e não Maomé. A explicação está na página 80 do ‘Manual da Redação’: ‘Use Muhammad para designar o fundador do islamismo. O nome Maomé é considerado ofensivo por seguidores do islamismo, por significar o que não é filho de Deus’.’